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Especialistas reconhecem avanço no Marco Civil, mas divergem sobre votação

Do UOL, em Brasília e São Paulo

07/11/2013 11h19Atualizada em 12/11/2013 08h04

O Marco Civil, considerado uma espécie de “Constituição” da internet, está sendo debatido há anos no Congresso e atualmente tramita em regime de urgência. Sua votação pode ser realizada na próxima semana, mas ainda não há consenso se o texto está pronto para ser aprovado.

Relator do marco civil da internet defende neutralidade 

Entre os pontos mais polêmicos do projeto de lei – que ganhou recentemente uma nova versão – está a neutralidade da rede. O deputado e relator do Marco Civil, Alessandro Molon, diz que a isenção da neutralidade seria “preconceito contra pobre" e representaria uma nova forma de exclusão digital. Já o deputado federal e líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha,  diz que esse princípio pode encarecer o acesso dos brasileiros à internet.  

Abaixo, você confere a opinião de diversos especialistas, de áreas distintas, sobre o Marco Civil da Internet.

Demi Getschko, conselheiro do CGI
Para o conselheiro do Comitê Gestor da Internet, que apoia a neutralidade prevista no projeto do Marco Civil, o serviço de internet tem de ser visto como um condomínio. “Os elevadores de um prédio são neutros [não fazem distinção por classe ou cor]. Os moradores do local pagam a mesma taxa de condomínio, independente do número de vezes que utilizam o serviço”, explicou durante discurso na Câmara dos Deputados.

Getschko ainda ressaltou a importância da definição de regras para criar um ambiente mais seguro na rede. “Se alguém xinga uma pessoa do bar, o dono do estabelecimento não deve ser culpado”, exemplifica. Segundo ele, a insegurança jurídica sobre quem deve ser responsabilizado por ações na internet pode inibir a abertura de novos negócios.

Eduardo Levy – Sinditelebrasil
O presidente da organização que representa operadoras de telefonia ressaltou que a neutralidade, tal como está no projeto do Marco Civil, é única no mundo e que sua aprovação poderá inibir drasticamente a capacidade de investimento do setor ao tratar usuários com necessidades diferentes de forma igual.

“Defendo a neutralidade como ela é vista em todo o mundo. Se estivéssemos discutindo uma legislação semelhante à do Chile, da Colômbia, dos Estados Unidos ou da União Europeia, nós já estaríamos assinando o Marco Civil sem nenhuma restrição”, disse Levy durante discurso na Câmara dos Deputados.

Ele também destacou como a falta de oferta de planos personalizados (com pacotes de acesso específicos, como às redes sociais) pode afetar o que ele chamou de “maior plano de inclusão digital” sem ajuda do governo. “Defendemos a inclusão dos menos favorecidos com ofertas customizadas. Estamos oferecendo hoje a possibilidade de inclusão ao cidadão a menos de R$ 1 por dia.”

Para ele, com o atual projeto, há a possibilidade de se ter uma oferta única, de modo que milhões subsidiem o consumo de poucos.

Eduardo Parajo – Abranet
O presidente do conselho consultivo superior da Abranet (Associação Brasileira de Internet) considera que, “a princípio”, o texto do projeto de lei do Marco Civil está pronto para ser votado.

Segundo ele, a proposta tem sido discutida há bastante tempo e, apesar das recentes modificações feitas pelo relator, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), permanecem inalterados pontos essenciais como a neutralidade, a privacidade e a inimputabilidade.

Parajo observou, porém, que a entidade ainda analisa em detalhes o novo texto para se certificar de que não há nenhum ponto que possa prejudicar algum desses princípios ou modificar o seu entendimento. “Espero que não tenha nada comprometedor, porque foi um texto bem discutido.” Em discurso no Plenário, ele falou:  "O diabo mora nos detalhes e, quanto mais detalhes houver no projeto de lei, mais brechas teremos".

Alexander Castro - Acel
Segundo o representante da Associação Nacional das Operadoras Celulares, o texto do Marco Civil ainda precisa ser aprimorado, sob risco de inibir investimentos das operadoras e impedir que garantam o funcionamento da rede. “O setor sofrerá uma intervenção em seu modelo de negócios e na gestão de suas redes”, criticou durante discurso em comissão geral sobre o tema.

Castro disse que o conceito de neutralidade exposto no texto do Marco Civil não levou em consideração legislações internacionais já adotadas. Para ele, houve confusão quando se misturou o debate da neutralidade com o da oferta de planos e serviços. O conceito de neutralidade no texto, prosseguiu, permite a interpretação de que os serviços baseados em volume não podem ser mais ofertados.

Se adotado, “milhares de usuários” teriam planos atuais descontinuados e apenas uma alternativa para contratar – internet ilimitada e diferenciada apenas por velocidade. “Eles terão de pagar mais para fazer uso dos benefícios da internet”, disse Castro.

O representante apontou ainda uma contradição no texto, que no artigo 3º estabelece a “preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede”, mas no artigo 9º proíbe que as operadoras analisem e monitorem o conteúdo de pacotes. “Essa atividade é a essência da gestão das redes de telecomunicações, o que possibilita as operadoras garantir sua estabilidade e segurança”, argumentou.


Sérgio Amadeu, sociólogo e pesquisador de cibercultura
Sérgio Amadeu, que contribuiu com a elaboração do Marco Civil, fez um discurso na Câmara dos Deputados apoiando a neutralidade de rede prevista no projeto e criticando as operadoras. “Ao quebrar a neutralidade, elas [as operadoras] querem mudar a lógica da rede. Isso significa impedir que tenhamos [aplicações] multimídia disponíveis para todo o mundo.”

Segundo ele, ter planos específicos para determinadas aplicações (como e-mail) limita o acesso à rede de pessoas mais pobres. O sociólogo chegou a dizer que as teles, ao apoiar a quebra de neutralidade, querem criar “duas internets”: uma para ricos (com acesso completo) e outra para pobres (limitadas). “As operadoras querem ‘pedagiar’ o ciberespaço. Querem transformar a internet em uma grande rede de TV a cabo.”

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo - OAB/SP
Para o presidente da Comissão de Direito Eletrônico e Crimes de Alta Tecnologia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), há um conflito entre o Marco Civil da Internet e a Constituição federal. Isso porque, segundo ele, enquanto a Constituição tem como fundamento principal o respeito à dignidade humana, o projeto tem como pilar o direito à liberdade de expressão. Como lei de cunho principiológico (caso, por exemplo, do Código de Direito do Consumidor), ele defende que o Marco Civil esteja, obrigatoriamente, em harmonia com leis constitucionais.

“O Marco Civil, da forma como está proposto, é inconstitucional. Ele acarretaria problemas, permitindo que cada um fale na internet o que quiser, sem a garantia de respeito aos cidadãos”, afirma.

Quanto à questão de remoção de conteúdo da rede, o Marco Civil criaria “dois pesos e duas medidas”. “O provedor não pode tirar determinado conteúdo ofensivo sob pena de censura, mas, para casos de violação de direitos autorais, a retirada é imediata”, explica. O novo texto do Marco Civil deveria ainda, prossegue Camargo, aumentar o prazo de guarda de dados de conexão, que permite a investigação de crimes e infrações. “Precisaríamos de um prazo de três a cinco anos. Um ano é muito pouco.”

Camargo avalia que o texto ainda não está suficientemente maduro e que mais audiências públicas seriam necessárias antes da votação do texto final.

Marília Maciel – FGV-RJ
A pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ ressalta a mudança de enfoque dada à discussão no Brasil pelas operadoras – algo que estaria em descompasso com o cenário internacional.

As empresas que atuam no país alegam que a neutralidade demandaria mais investimento em infraestrutura e tornaria as tarifas mais caras para os consumidores. “Fora do país, as operadoras têm discutido com empresas, como Google e Facebook, sobre o alto tráfego gerado por elas. No Brasil, a discussão veio para cima do consumidor”, afirmou Marília.

Durante a edição de 2011 do Mobile World Congress (evento de tecnologia realizado em Barcelona, na Espanha), Cesar Alierta, diretor-executivo do grupo Telefônica, disse que estava conversando com provedores de conteúdo para que eles fossem cobrados pelo tráfego gerado na rede. Na ocasião, Franco Barnabe, que era diretor-executivo da Telecom Italia, também afirmou que não deveria haver “almoço grátis” para provedores de conteúdo.

Rony Vainzof, especialista em direito digital
O advogado especializado em direito digital defende que, da forma como está, o projeto de lei não deve ser votado. O problema “crucial” apontado por Vainzof está na nova redação do artigo 18, que desobrigaria os provedores de aplicações de internet (caso do Facebook e Gmail, por exemplo) de guardarem registros de acesso. Isso só seria obrigatório mediante ordem judicial (artigo 17), mas o advogado afirma que não há como antever um crime para pedir essa guarda.

“Esse assunto já havia sido debatido e, da forma como está, vai inviabilizar as investigações”, explicou, dizendo que não se terá acesso a dados cadastrais nem registro de acesso dos responsáveis por crimes na internet. Ele defende uma alteração que considera simples no texto: extinguir o artigo 18 e prever que os provedores de aplicações guardem os registros pelo período de um ano (como já é previsto para os provedores de acesso).

Com exceção desse ponto, o especialista considera o projeto positivo e bastante importante. “Mas essa questão [da guarda de dados] é tão gritante e preocupante que, se não for alterada, é melhor que o projeto não seja aprovado.”

Leandro Bissoli, especialista em direito digital
Para o especialista do PPP Advogados, a inclusão de um artigo em resposta às denúncias de espionagem dos Estados Unidos não evita o vazamento de dados. “É uma ação direta do poder Executivo, mas não garante necessariamente a proteção dos dados dos brasileiros. Dependendo da rota de comunicação, o dado vai lá para fora e volta [poderia ser interceptado]. A grande vulnerabilidade é o Brasil não ter uma infraestrutura tecnológica que impeça a espionagem.”

Deputado mostra apoio em forma de literatura de cordel

Para Bissoli, embora pontos no Marco Civil tenham sido melhorados (como o esclarecimento de como os provedores usarão dados pessoas dos internautas e a garantia da neutralidade da rede), outros ainda precisam de melhor tratamento. Entre eles, a guarda obrigatória do registro de conexão por um ano pelo provedor, mas facultativa para provedores de aplicação (caso do Facebook e Gmail, por exemplo). “Isso permite que perfis anônimos, por exemplo, publiquem ofensas, sem que a vítima consiga a identificação deles.”

Outro ponto criticado pelo especialista é o da guarda de dados por provedores de conexão por um ano, fornecida apenas mediante ordem judicial, até mesmo a autoridades policiais -- o que dificultaria investigações. “O período ainda é pequeno, mas antes um ano de guarda de dados do que nenhum”, afirma.

O texto mantém a remoção de conteúdo ofensivo mediante ordem judicial, o que na prática prejudica quem é ofendido, explica Bissoli. “Por mais rápido que um advogado seja, a velocidade da internet é exponencial. Isso gera danos maiores à vítima, embora dê maior segurança ao provedor de conteúdo, que não será responsabilizado civilmente por aquela publicação.”

Marcelo Branco - Associação Software Livre
Branco acredita que o Marco Civil é uma referência internacional em legislação da internet. “Possivelmente estamos aprovando aqui a legislação mais moderna do mundo, uma ‘carta magna’ da internet brasileira. E ela vem precedida das mesmas ferramentas que levaram as pessoas às ruas nos protestos de julho”, destacou Branco em comissão geral sobre o tema, realizada no Plenário.

A questão da neutralidade da rede, para Branco, é o ponto crucial do Marco Civil. Ele afirma que a internet não pode ser tratada meramente como um produto, e sim como um sistema mundial. “Existe uma grande confusão. A internet não é uma rede de telecomunicações. As redes de telecomunicações ainda existem e oferecem serviços diferenciados, com planos diferenciados”, disse, complementando que seria um retrocesso não garantir a neutralidade da rede.

Manoel Antonio dos Santos – Abes
O diretor jurídico da Associação Brasileira das Empresas de Software considerou uma surpresa as mudanças mais recentes no Marco Civil, referentes aos novos artigos 11 (que obriga o tratamento de dados a respeitar a legislação brasileira) e 12 (Executivo poderá obrigar provedores de conexão e aplicações a utilizarem estruturas baseadas em território nacional). Segundo ele, isso pode encarecer no Brasil o uso da tecnologia.

“Os fornecedores de programas e serviços podem deixar de fornecer aos brasileiros, porque não querem criar essa base no Brasil. Isso vai gerar um custo adicional, causado pela criação de servidores no país e duplicidade de dados”, afirmou em comissão geral sobre o tema, realizada no Plenário.

Santos disse entender o momento em que “a presidente quis dar uma resposta à intromissão americana”, mas afirmou que o usuário não pode pagar por isso. “A resposta ao Tio Sam vai acabar encarecendo os serviços.” Ele defende a criação de um acordo internacional para definir como tratar os dados e não a inclusão desse tópico em “uma lei que estamos discutindo há anos e de uma hora para outra aparece com essa novidade.”

Cláudio Lins de Vasconcelos - ABPI
O diretor da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual mostrou-se a favor do Marco Civil e afirmou que o tópico referente aos direitos autorais será o principal ponto de uma discussão que deve vir a seguir, no debate da nova lei de direitos autorais. O objetivo, explicou, é “garantir que o produtor cultural brasileiro terá as ferramentas para evitar que suas obras sejam copiadas ilegalmente e em larga escala na internet”.

Em comissão geral sobre o Marco Civil, realizada no plenário, ele disse: “Que tipo de sociedade queremos construir baseados na negação sistemática do valor intrínseco do conteúdo intelectual? [...] Os direitos incidentes sobre o produto intelectual são de interesse nacional. Se há uma área em que o brasil tem uma vantagem competitiva importante internacionalmente é a de criação e proteção de conteúdo”.

Marivaldo de Castro Pereira - Ministério da Justiça
O secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça destacou a importância da criação do Marco Civil para definir direitos, garantias e responsabilidade dos usuários e empresas na rede. A proposta se aprovada como está, segundo ele, tornará o país “referência em regulamentação da internet”.

Marco Civil é uma 'vacina para o futuro', diz Demi Getschko

Para Pereira, é fundamental que o texto se preocupe com as atividades ilícitas cometidas na rede. “Não podemos tomar todo o universo de relações na rede como condutas ilícitas, mas é fundamental que as autoridades tenham mecanismos para punir práticas assim”, disse. O Marco Civil, afirmou em sessão no Plenário, cria esses mecanismos ao mesmo tempo em que garante a privacidade do usuário.

Nelson Wortsman – Brasscom
O representante da Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação defende uma “imersão” na discussão sobre obrigatoriedade de data centers no Brasil  - a nova redação do Marco Civil deixou para uma regulamentação posterior a obrigação de empresas de internet manterem esse banco de dados no país.

Wortsman afirmou que o Brasil tem a pior competitividade na área, se considerados seus vizinhos da América Latina e Miami (EUA). Seriam gastos US$ 60 milhões para construir um data center por aqui (contra US$ 43 milhões nos EUA), e as operações custariam cerca de US$ 1 milhão ao mês no Brasil (ante metade desse valor na Argentina e Colômbia).

“Os data centers vão se movimentar [para diferentes países] de acordo com a competitividade. Isso não pode ser imposto, mas sim conquistado”, afirmou. Por isso, ele defendeu em discurso na Câmara dos Deputados a criação de incentivos – como a desoneração de impostos - para a instalação no país desses bancos de dados.