Topo

Especialistas apontam possíveis impactos do fim da neutralidade na internet

Do UOL, em São Paulo

16/01/2014 09h49

A Justiça dos Estados Unidos determinou nesta semana inválidas as regras da FCC (Comissão Federal de Comunicações, na sigla em inglês) que determinam a neutralidade da rede. Com a decisão, o órgão deixará de garantir - ao menos temporariamente, pois cabe recurso - que todo o tráfego da internet seja tratado de maneira isonômica, sem distinção pelo tipo de conteúdo. Diante disso, o site “Huffington Post” divulgou um artigo em que especialistas apontam como será a internet, caso o princípio seja deixado de lado.

A neutralidade prega que todo o tráfego seja tratado de forma igualitária por quem fornece a conexão ao usuário (ou seja, as operadoras de internet fixa e móvel). Nos EUA, assim como no Brasil, a questão divide as empresas que fornecem conexão à internet e os provedores. As teles reivindicam o direito de vender pacotes distintos de internet, enquanto os provedores defendem que a oferta de conteúdo deve ser neutra, sem distinção pelo tipo de conteúdo.

Sem neutralidade, as teles poderiam oferecer ao usuário de internet no celular um pacote mensal de acesso ilimitado a uma única rede social ou a sites específicos. Os provedores alegam que a prática limita a liberdade e impede que empresas de conteúdo digital ganhem espaço no mercado (quem acessa o Facebook dentro do pacote, por exemplo, dificilmente experimentaria outras redes sociais).

Seguem os principais impactos dessa mudança, segundo especialistas ouvidos pelo “Huffington Post”.

1. Empresas grandes x pequenas
Na forma mais óbvia de impacto, diz o “Huffington Post”, grandes empresas de internet (caso do Netflix e Amazon) pagarão às operadoras de telecomunicações para que seu conteúdo seja entregue rapidamente aos clientes. As menores companhias não poderão fazer o mesmo e, dessa forma, serão prejudicadas.

Derek Turner, jornalista que atua no grupo de liberdade na imprensa Free Press, diz que o fim da neutralidade pode ser ilustrado por uma estrada dividida em duas faixas. Uma delas, limpa e com boa manutenção, será usada pelas empresas que podem pagar (dessa forma, seu conteúdo será entregue com prioridade). Já a faixa suja será a única alternativa para os demais.

Turner acrescenta que essa prática não incentiva a manutenção da “faixa suja”, porque as operadoras vão querer todos os clientes pagando para usar a melhor área dessa estrada.

2. Internet de rico ou de pobre
Todd O’Boyle, diretor da organização para transparência política Common Cause, prevê que ricos e pobres terão internets diferentes. Isso porque, segundo ele, alguns tipos de sites e serviços atualmente gratuitos só poderão ser acessados mediante pagamento.

“Claro que isso estaria camuflado para favorecer as grandes empresas. As pessoas poderão receber ofertas de internet banda larga limitada, com a qual só poderão acessar um pequeno número de sites pré-selecionados. Por outro lado, os provedores de conteúdo terão de pagar a mais pelo privilégio de ter seu conteúdo exibido a esses clientes das promoções”, prevê O’Boyle.

O especialista afirma que esse tipo de prática já foi adotado na África, onde o Facebook oferece acesso subsidiado via telefones celulares àqueles que não têm condições de usar a internet “real”. “O uso do Facebook é provavelmente melhor do que a falta completa de acesso à internet. Mas realmente queremos todos os sites segregados entre pobres e ricos?”, questiona o artigo.

3. Grandes empresas
Ao contrário do que acontece atualmente, quando pequenas empresas da internet podem tornar-se gigantes em pouco tempo, a falta de neutralidade reforça a soberania dos gigantes. Turner, do grupo para liberdade de imprensa, diz que essa mudança acabará com as chances de todos competirem em um mesmo nível.

Ele cogita ainda que as empresas de telecomunicações, responsáveis pelo tráfego de internet, poderão bloquear o acesso a determinados sites para não prejudicar o conteúdo de seus clientes (aqueles que pagam para trafegar pelas “estradas boas” mencionadas acima). Na prática, poderia ficar mais difícil acessar um concorrente do Facebook ou Google, por exemplo.

4. ‘Curadoria’
Assim como acontece com os pacotes de TV a cabo, a falta de neutralidade permitirá que as empresas definam a qual conteúdo os clientes terão acesso. Os pacotes mais básicos, prevê o “Huffington Post”, teriam os sites que mais pagam para as empresas de telecomunicações (caso de gigantes como Amazon e Netflix).

Outra possibilidade é combinar páginas muito populares com aquelas ainda desconhecidas, dispostas a pagar para turbinar sua audiência. O usuário interessado em um pacote com o Netflix, por exemplo, teria de usar um site de buscas menos popular que o Google (esse serviço “alternativo” pagaria para fazer parte desse pacote).

Quem paga a conta?
A neutralidade da rede vem sendo bastante discutida no Brasil, pois ela está prevista no projeto do Marco Civil da Internet.

Para o deputado federal Eduardo Cunha (RJ), líder do PMDB na Câmara, esse tratamento isonômico dos dados pode encarecer o acesso dos brasileiros à internet.  O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do projeto de lei, negou que a proposta possa ter esse efeito e disse que os valores cobrados aumentarão caso ela não seja aprovada. As afirmações foram feitas no Plenário da Câmara, em novembro do ano passado.

"Todos nós somos a favor [da neutralidade]. Não tem ninguém aqui [no Plenário] que ficará contra [...]. Dizer que todos têm o mesmo direito é um discurso muito bonito", afirmou, indicando que na prática a proposta não é viável.

"Se for necessário oferecer uma infraestrutura igual para todo mundo, de forma ilimitada, tenho de oferecer a maior. Não tem almoço de graça [...]. Alguém vai pagar a conta e óbvio que isso aumenta o custo para o usuário", disse Cunha.

"É como dizer que todos terão energia elétrica de forma igual. Se você usar 50 aparelhos de ar condicionado, 24 horas por dia, vai pagar a mesma coisa que quem só acender uma lâmpada em um quarto. Sem contar que o ar condicionado, sendo usado por todos, vai fazer com quem não o utilize passe a usá-lo", comparou. Ele também deu como exemplo o pagamento de uma mesma taxa de gasolina, para quem rode 10 km ou 2.000 km ao mês. "Vou andar de carro o dia inteiro."

Segundo Cunha, esse tipo de ação (igualar a oferta) criará uma demanda de infraestrutura que não poderá ser atendida. "O empresário não vai trabalhar para perder dinheiro. Então não vai fazer [atender à demanda], e o serviço vai congestionar. Vai cair tudo." Em comparação, citou a telefonia no país: "Os planos ilimitados congestionaram [a infraestrutura] de celular no Brasil e acabaram derrubando as ligações. Com a internet não será diferente."

Já Molon disse que o encarecimento só será uma realidade caso o Marco Civil (que prevê o princípio de neutralidade) não seja aprovado. "[Nesse caso] As empresas poderão oferecer internet fatiada e cobrar preços extras pelo tipo de conteúdo que se queira acessar."

O relator também classificou a falta de neutralidade como "preconceito contra pobre". Ele citou um estudo dizendo que pessoas com renda mensal de até um salário mínimo e que usam a web acessam mais vídeos do que e-mail. "Vídeo na internet hoje em dia não é lazer. É acesso à educação."