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Princípios da internet reforçam privacidade, mas não o combate à espionagem

Sessão de encerramento do Netmundial; evento reuniu representantes de 97 países  - Divulgação
Sessão de encerramento do Netmundial; evento reuniu representantes de 97 países Imagem: Divulgação

Ana Ikeda

Do UOL, em São Paulo

24/04/2014 21h18Atualizada em 25/04/2014 13h29

O evento Netmundial apresentou nesta quinta-feira (24) a "carta de princípios" da governança da internet, debatida por representantes de múltiplos setores -- governos, empresas, técnicos e sociedade civil. O documento propõe um conjunto de acordos e tratados que permitem uma "padronização" de questões relacionadas à rede mundial em todo o mundo.

Ao contrário do que foi sugerido com muita ênfase nos dois dias do evento em São Paulo, a vigilância virtual não foi detalhada ou desenvolvida a fundo. No entanto, o texto aborda o outro lado dessa questão, reforçando a importância da privacidade. Segundo o documento, esse direito deve "ser protegido, o que inclui não ser objeto de vigilância, coleta, tratamento e uso arbitrários e ilegais".

O único parágrafo que trata diretamente da espionagem dizia inicialmente que a vigilância da comunicação, a interceptação e a coleta de dados pessoais deveria estar de acordo com as leis de direitos humanos. O documento final retirou o termo "vigilância da comunicação", considerando que apenas a "coleta e processamento de dados pessoais" devem seguir essas leis.

O entendimento é que os governos podem praticar a vigilância dos cidadãos sob a necessidade de garantir a segurança nacional e coletiva.

O texto diz ainda que: "Mais diálogo sobre esse tópico é preciso, em nível internacional, usando fóruns como o IGF [fórum de governança da internet] e o Conselho dos Direitos Humanos], com o objetivo de desenvolver um entendimento comum sobre todos os aspectos relacionados". 

O nome de Edward Snowden, ex-agente da NSA responsável por divulgar os casos de espionagem dos EUA no mundo, apareceu frequentemente nas falas de participantes que pediram destaque à questão da vigilância. Na abertura do evento, a presidente Dilma Rousseff classificou o esquema de espionagem revelado em 2013 como alvo de "repúdio" e "indignação".

Neutralidade
O termo "neutralidade da rede" continuou fora do texto na nova versão do documento (uma única menção diz que a neutralidade precisa ser discutida em futuros encontros). EUA e União Europeia se opuseram ao uso do termo neutralidade, defendido pelo Brasil.

Um trecho, no entanto, trata do tema -- o artigo 12, sobre "Arquitetura aberta e distribuída”. Nele, está expressa a garantia a "um ambiente baseado em arquitetura aberta com colaboração voluntária, mantendo a natureza direta de ponta a ponta". Não é feita menção ao tratamento igual para protocolos e dados, como havia no documento anterior.

Na conclusão do evento, Paulo Bernardo, ministro das Comunicações, disse que a neutralidade da rede tem de ser considerada nas próximas discussões sobre governança. "Nenhum documento termina só porque foi aprovado."

Carta de princípios
O texto está dividido em duas partes: princípios (garantias aos internautas e atores envolvidos no "ecossistema" da internet) e roteiro da evolução da governança (como as diretrizes podem ser aplicadas na prática). Na quarta-feira (23), foi divulgado um rascunho criado a partir de sugestões de diversos setores.

Com base no rascunho criado de forma colaborativa, foram feitas diversas sugestões pelos participantes do evento, que era fechado ao público. Segundo a organização, o primeiro dia teve 1.229 inscritos, vindos de 97 países diferentes.

Essa “carta” não é um documento com força de lei, mas servirá de base para reuniões futuras sobre governança da internet (como já acontece no setor ambiental). Hamadoun Touré, da UIT (órgão de telecomunicações da ONU), disse que a próxima missão é levar essas discussões iniciais do Netmundial a um "segundo nível" - outro encontro como o que ocorreu em São Paulo deve ser marcado nos próximos seis meses.

A criação de um documento que pudesse reunir diretrizes de governança (muitas delas já aplicadas nas relações entre internautas, empresas e governos) na rede mundial veio da necessidade de centralizar ações tomadas atualmente por dezenas de entidades -- em sua maioria com sede nos Estados Unidos. A mais conhecida delas é o Icann, que cuida da distribuição de números IP (identificação única dos computadores que acessar a internet).

Com o documento proposto, porém, um modelo multissetorial passa a se ocupar em gerenciar essas questões que podem ter impacto mundial no uso da internet. Ou seja: as decisões não ficarão a cargo de um único governo ou única entidade, mas de múltiplos.

Avaliação
Touré, da UIT, avaliou positivamente os debates e disse ter sentido "boas vibrações" a respeito de como serão postas em prática as ideias apresentadas. Mas ele lamentou que ainda existam questões sendo resolvidas à força, e não com diálogo.

"Temos muito em comum como seres humanos e mesmo assim ainda temos guerras. As discussões aqui sobre a internet provam que um consenso é possível. A missão agora é levar esse debate a um segundo nível."

Fadi Chehadé, membro do comitê executivo multissetorial do Netmundial e representante do Icann (órgão responsável pela distribuição de IPs), chamou atenção ao fato de que a discussão sobre os rumos da internet ocorreu pela primeira vez no hemisfério sul, e não no norte, de onde costumam partir decisões e regras.

Ele, no entanto, pediu que haja um esforço geral para que as diretrizes apontadas no documento final não fiquem apenas "no papel".

"Muitos me questionaram sobre 'O que virá depois?' Devemos pensar em como tornar tudo isso realidade com ações concretas. Conheço muitas pessoas que estão cansadas das palavras. Elas querem resultados", criticou. Para Chehadé, os "ganhadores" do Netmundial, em uma analogia à Copa do Mundo, são os internautas, não os governos, setores da sociedade ou empresas. "Devemos construir um resultado que beneficie o usuário final", concluiu.