Mulheres motoristas

... e vítimas: quando a violência sexual pula para o banco da frente

Bruna Souza Cruz Do UOL, em São Paulo Erika Lourenço

Intimidação, assédios de todos os tipos, estupro. É difícil encontrar uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de violência ao longo de sua vida. Em muitos casos, o ato é cometido por conhecidos (namorados, pais, vizinhos). Mas o perigo também pode estar no banco do passageiro.

Suelen Cristina ficou indignada quando um passageiro mostrou o próprio pênis durante uma viagem. Kelly bateu com o celular no rosto de um também passageiro quando ele tentou beijá-la a força. Elisa ficou traumatizada após uma passada de mão não autorizada.

As situações foram vividas pelas três durante o trabalho como motoristas da Uber, mas podem muito bem representar uma série de profissionais que passa o dia circulando pelas cidades, usando os mais diferentes tipos de aplicativos de transporte particular, e que precisa aguentar homens inconvenientes —quando não, criminosos.

"Um desse tamanho não satisfaz?"

Um passageiro bêbado entrou no meu carro e não parava de reclamar que estava com problemas com a esposa. Perto de onde ele morava, pediu para eu parar porque ele queria fazer xixi. Estacionei e esperei, porque o pagamento era no débito. Foi aí que ele começou a mostrar o pênis para mim e perguntar se eu gostava. Ele balançava [o órgão] e falava: 'Um desse tamanho não te satisfaz?' e 'Tem que ser maior?'. Comecei a xingar e ameacei chamar o porteiro do prédio onde ele morava. Segundos depois, o homem colocou sua calça e pagou a corrida.

Suelen Cristina Silva Brocanelli, 25 anos, motorista há dois anos

A sensação de vulnerabilidade é diária, segundo as três motoristas ouvidas pelo UOL Tecnologia, e começa no momento em que colocam os pés para fora de suas casas. Para Suelen, o maior medo, além de assaltos, é que ela seja vítima de algum tipo de violência sexual mais grave.

Não é para menos. A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados em 2015. Estudos mais recentes calculam que a cada hora 1.830 mulheres sofrem alguma violência ou agressão no país, algo como 16 milhões por ano.

O volume de condutoras que atuam dentro do segmento de aplicativos ainda é baixo em comparação com o dos homens. Mas já há algum tempo temos visto mulheres marcando presença na profissão. Dados do setor indicam que o índice de motoristas mulheres chega a 15% e 20%. Por isso, as discussões em torno da proteção das condutoras se tornam tão relevante.

"Ele segurou a minha cabeça e tentou me beijar"

Parei no local indicado, e um homem entrou no banco de trás. No meio do caminho, ele começou a me cantar. Chegou a perguntar se o meu namorado não tinha ciúmes de mim com esse trabalho. Ele não parava de me olhar pelo retrovisor. A 1 km do destino, ele pediu para parar. Quando parei, ele segurou minha cabeça por trás e tentou me beijar a força. Passou a mão em mim. Peguei o celular e bati no rosto dele algumas vezes até que ele me soltou, abriu a porta e saiu correndo. Reportei para Uber, e eles disseram que iriam bloquear esse usuário.

Kelly Cristina Fernandes Adrian, 33, motorista há pouco mais de um ano

A cultura do estupro é aceita

Kelly conseguiu se impor contra o passageiro (mesmo que ele tenha deixado o local fingindo que nada tinha acontecido), assim como também fizeram Suelen e Elisa. O susto inicial passou. Mas veio então a inquietação, uma sensação contínua para as motoristas de vulnerabilidade.

Que tipo de poder os homens têm para se sentirem no direito de assediá-las?

Para Daniela Pedroso, psicóloga do serviço de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington, uma das referências brasileiras na saúde da mulher, a resposta está diretamente ligada à cultura do estupro.

Alguns homens acreditam que têm o direito sobre o corpo das mulheres. Que podem praticar diversas formas de assédio sexual, e até mesmo uma tentativa de estupro, por imaginarem que não haverá justiça, que nada vai acontecer
Daniela Pedroso, psicóloga do Hospital Pérola Byington

Em 22 anos de dedicação ao atendimento à mulher, Pedroso relata que os sentimentos de culpa e de vergonha são comuns entre as vítimas de violência sexual, ambos fortalecidos pela cultura do estupro. Já devia estar claro na cabeça de todos, mas é sempre bom lembrar: a culpa nunca é da vítima.

Uma forte alternativa para o combate a essa cultura do estupro é a educação sexual, segundo a especialista. Isso inclui orientar a criança desde pequena que o corpo só pertence a ela e que ninguém tem o direito de tocá-la.

"A prevenção da violência sexual vem da educação, do diálogo. É fortalecer a menina para que ela tenha coragem de procurar ajuda. É formar a mulher do futuro, que vai se sentir mais segura e mais apta para poder se defender", reforça.

"Ele deixa você dirigir?"

Um cara chamou pelo aplicativo da Uber. Ele estava bem bêbado, entrou e já sentou no banco da frente. Começou com um papinho do tipo 'você tem namorado? Ele deixa você dirigir?'. Quando fui mudar a marcha, ele foi e colocou a mão em cima da minha. Eu tirei a minha bem rápido. Eu senti muito medo, um nojo, um asco muito forte. Esse assédio físico, de chegar e passar a mão em mim, eu nunca tinha passado. Encostei no lugar mais fácil que vi e mandei ele descer. Ele não saiu e ainda ficou resistente. Só saiu do meu carro porque eu fui até a porta dele, abri e mandei ele sair. Nossa! Eu voltei para casa tremendo.

Elisa Malta, 31 anos, ex-motorista que trabalhou por dois anos com aplicativos

Getty Images

Traumas que ficam

As violências sofridas deixam marcas. Elisa, por exemplo, até hoje se assusta se alguém faz um movimento inesperado enquanto está dirigindo.

Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, algumas vítimas de violência sexual sofrem o chamado estresse pós-traumático, que pode surgir tempos depois da agressão. Alguns dos sintomas são pesadelos, coração acelerado, irritabilidade e forte sofrimento ao lembrar da violência. A recomendação da especialista é que as mulheres procurem imediatamente apoio psicológico para evitar problemas maiores no futuro.

As três motoristas criaram também próprias estratégias de defesa. Evitam usar maquiagem durante o trabalho e andam preferencialmente com os cabelos presos. Usar roupas mais justas e blusas decotadas? Nem pensar.

Suelen

Trabalha com a Uber, mas tenta atuar com a 99 por se sentir mais segura. Outra opção foi dirigir para a plataforma Lady Driver, voltada para mulheres. "Meu maior medo na vida é sofrer algum tipo de abuso. Dentro do meu carro mando eu. Mas não sei como reagiria se eu visse que o cara está armado"

Kelly

Continuou trabalhando para a Uber e 99. Ela ainda lembra o nome do cara que a assediou sexualmente: Vinicius. "Acho que isso tudo me afetou, sim. Não trabalho mais à noite e fico desconfiada, achando que todo cliente pode fazer a mesma coisa"

Elisa

Parou de trabalhar como motorista assim que pode. Antes disso, optou por fazer viagens com o aplicativo Lady Driver. "Não consegui trabalhar por uma semana. Acho que ficou um trauma físico, sabe? Quando estou dirigindo e alguém vai pegar na minha mão, eu me assusto"

Uber e afins podem ser responsabilizadas?

Se uma mulher sofre algum tipo de assédio no ambiente de trabalho, a empresa tem a responsabilidade de tomar uma atitude contra isso, certo? Mas, no caso dos aplicativos de transporte, a coisa não funciona bem assim.

As plataformas de empresas como Uber, 99 e Cabify funcionam como mediadores entre quem deseja contratar um serviço e quem está disposto a oferecê-lo. Ou seja, os carros não pertencem às empresas e os motoristas não são profissionais vinculados. Eles trabalham em um esquema de parceria.

Por essa dinâmica, a advogada Gisele Truzzi, especialista em direito digital, acredita que juridicamente a Uber —plataforma onde os três casos aconteceram— dificilmente pode ser responsabilizada.

"O caso de assédio é uma situação muito específica que ocorre diretamente dentro do veículo, entre motorista e passageiro, e não por meio da plataforma. É um problema que se inicia a partir do momento que o passageiro ingressa no veículo. Por conta disso, a Uber não é responsável por esse tipo de situação", explica.

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro isenta da responsabilidade uma empresa que tenha oferecido um serviço adequadamente. Aplicando a regra para a dinâmica da Uber, o aplicativo concluiu a sua parte no processo adequadamente ao conectar os passageiros e as motoristas.

Apesar disso, dada a gravidade do problema, a advogada acredita que as empresas devem se colocar à disposição das motoristas assediadas, oferecer auxílio jurídico e criar campanhas ensinando como elas podem se defender.

A também advogada Vanessa de Araújo Souza, especialista em leis de tecnologia que trabalha no Vale do Silício (região nos Estados Unidos onde a Uber nasceu) e no Reino Unido, explica que as políticas da Uber até o ano passado eram mais brandas para casos de assédio. Mas, com o movimento "MeToo" as empresas começaram a adotar novas normas de conduta e, em tese, estão mais pró-ativas em coibir esses tipos de conduta.

Existem críticas sobre a forma pouco clara como os usuários da plataforma são punidos, mas a advogada considera que há uma mudança efetiva sobre a política de diversidade, que passou a banir racismo, assédio sexual e protege mais motoristas e passageiros.

Se não é responsável, o crime fica impune?

Não. Apesar de a empresa poder não ser responsabilizada em um processo judicial (tudo também depende da percepção do juiz que vai decidir o caso), um processo criminal pode e deve ser iniciado.

Para a advogada Souza, as vítimas devem denunciar os crimes para os órgãos policiais e autoridades públicas visando coibir tais condutas, "pois se tratam de questões onde o princípio da dignidade humana deve prevalecer sobre qualquer modelo de negócios desenhando no Vale do Silício".

O que dizem as empresas:

Uber, 99, Cabify e Lady Driver afirmaram que repudiam qualquer tipo de violência contra as mulheres.

Reprodução

Uber

Reforça que todas as viagens são registradas por GPS (sistema de geolocalização) e que isso permite que, em caso de necessidade, uma equipe especializada consiga dar suporte às autoridades fornecendo o trajeto da ocorrência, os nomes dos passageiro e da motorista parceira. A empresa conta também com um sistema inteligente que consegue identificar mensagens impróprias trocadas entre motoristas e passageiros. Cada caso é um caso, mas ambos podem ser banidos dependendo do conteúdo trocado.

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99

Bloqueia o usuário suspeito de violência enquanto as investigações policiais são feitas. Por isso, a orientação é de que a vítima faça o boletim de ocorrência e comunique a 99 por seu canal de atendimento. A empresa também possui um algoritmo que rastreia denúncias de assédio deixadas nos comentários ao fim das corridas. Testes com câmeras de segurança dentro dos veículos e conectadas com a central de monitoramento da empresa estão sendo feitos.

Divulgação

Cabify

Recomenda que qualquer situação atípica deve ser informada para sua central de atendimento. Dependendo do caso, pode haver suspensão ou bloqueio de conta do passageiro e/ou do motorista. Em relação a proteção do passageiro, ela realiza um processo mais rigoroso de cadastro de motoristas, que abrange a verificação de antecedentes criminais e exames toxicológicos. Não detalhou o processo em relação a mais práticas para proteção dos motoristas.

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Lady Driver

Plataforma brasileira exclusiva para mulheres diz que a verificação de motoristas e passageiras é o que a torna mais segura. Os usuários que desejam usar o aplicativo precisam fornecer dados pessoais (nome, endereço, CPF) e as informações são analisadas para provar se a passageira existe realmente. O cadastro de motoristas também é rigoroso, segundo a empresa. Quem não cumprir as regras estabelecidas, pode ser banido da plataforma.

Procure a polícia!

Suelen, Kelly e Elisa preferiram não fazer um boletim de ocorrência sobre os assédios sofridos. Elas fazem parte das estatísticas que apontam que 52% das mulheres que passaram por alguma violência ou agressão decidem não denunciar.

No caso das motoristas, os motivos podem ser o medo de serem banidas dos serviços de transporte, a insegurança na hora de fazer a denúncia ou mesmo a necessidade de esquecer o problema para não reviver as memórias ruins.

Apesar de algo delicado, a recomendação de especialistas das áreas de segurança pública, do direito e da saúde mental é que as mulheres façam os registros formais na delegacia em casos de violência. A comunicação formal é fundamental para que os autores possam ser identificados e punidos, ressalta a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Além disso, o órgão afirma que, sem o registro, não é possível abrir investigações e fazer o monitoramento correto dos casos de violência contra a mulher.

A psicóloga Daniela Pedroso acrescenta que, por mais vulnerável e exposta que a mulher se sinta, a denúncia é importante porque também ajuda na coleta de dados que poderão ser usados posteriormente para a criação de políticas públicas voltadas a segurança da mulher.

Como denunciar?

  • Direto na delegacia - algumas cidades possuem unidades exclusivas para mulheres;
  • Por e-mail: ligue180@spm.gov.br;
  • Por telefone: 180

Ouço muito de passageiros frases como 'você não tem medo?', 'Isso não é trabalho para mulher'. Eu sempre respondo que a mulher trabalha no que ela quer, não existe isso de que mulher pode ou não pode. A mulher pode estar em qualquer trabalho, pode fazer trabalho leve ou pesado

Suelen Cristina, motorista de aplicativos de transporte

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