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02/07/2011 - 08h00 / Atualizada 02/07/2011 - 08h00

Sexo virtual e salas de bate-papo viram roteiro de ópera em Londres

FERNANDA CALGARO||Para o UOL Tecnologia
Em Londres

How r u doin? :-)

A frase ("como você está?", em um inglês bem informal) aparece nessa linguagem assim cifrada, abreviada, típica dos chats na internet, em um painel luminoso discreto, acima do palco. O improvável cenário é o tradicional London Coliseum, teatro inaugurado em 1904 no coração da capital britânica, ao lado da Trafalgar Square. A pergunta dá início a um diálogo "virtual" entre dois personagens em um contexto ainda mais inusitado: uma ópera.

Inspirado em uma história real ocorrida há vários anos na cidade de Manchester, no norte da Inglaterra, o enredo, à primeira vista, parece simples. Um adolescente é esfaqueado e outro mais velho é pego nas câmeras de segurança deixando a cena do crime. À medida que a investigação avança, porém, a trama se complica e a policial de meia idade que apura o caso se vê às voltas com um emaranhado de identidades falsas, salas de bate-papo e sexo virtual. Como complicador extra, há a falta de familiaridade dela com o mundo digital.

A produção ''Two Boys'', comissionada pela The Metropolitan Opera, de Nova York, é encenada pela ENO (ópera nacional inglesa) em dois atos. No palco, 12 atores principais dividem a cena com outros 25 figurantes adultos e 15 crianças, que representam ora usuários de internet, ora atendentes de um hospital, ora frequentadores de uma igreja. A música, sombria a maior parte do tempo, fica a cargo de uma orquestra de 80 músicos e um coro com 50 cantores.

Cenários
O roteiro se desenrola entre dois tipos de cenas. Em algumas, Brian, o adolescente acusado de esfaquear o mais jovem (Jake), é interrogado pela policial. Em outras, ele está em seu quarto, interagindo com diferentes pessoas online. O que permite ao público perceber a separação entre o mundo real e o virtual -- saber quando o personagem está numa sala de bate papo, por exemplo -- é a projeção de vídeos em enormes telas que compõem o cenário móvel.

Então, enquanto dois atores cantam as suas falas (sim, porque, lembre-se, trata-se de uma ópera), dois painéis laterais, um de cada lado do palco, mostram a foto dos personagens e reproduzem os diálogos, tal e qual numa conversa de MSN. As falas são acompanhadas das respectivas legendas no já mencionado painel eletrônico, comum no mundo das óperas. O lance inovador é que as legendas entram no espírito do enredo, simulando o "internetês". Apesar da música envolvente e da montagem grandiosa, não deixa de ser estranho ouvir árias com frases do tipo: "Estou no meu quaaaarto, fazendo a lição de caaaasa". Também há conversas menos prosaicas, envolvendo sexo e histórias sobre estupro e morte.

Um dos momentos mais dramáticos e bonitos da ópera é quando a policial enfim começa a entender como funciona a realidade online, em que as pessoas incorporam outras identidades e se fazem passar por quem não são. Com o palco à meia luz, um grupo numeroso de internautas com seus computadores iluminados é acompanhado ao fundo de uma tela gigante com imagens que se assemelham a sinapses cerebrais, numa analogia às conexões na rede virtual. A cantoria de vozes desencontradas, a plenos pulmões, enche o teatro de tensão.

Experiência própria
A ideia de trazer o universo da internet para uma ópera foi do compositor Nico Muhly em parceria com Craig Lucas, responsável por escrever o libreto (como é chamado o texto de uma ópera). "Sou fascinado pela enorme quantidade de informações e imagens disponíveis na internet. A trama que montamos é tão moralmente complicada quanto as grandes óperas da história, mas é contemporânea. Tento criar a partir das minhas próprias experiências", afirma em entrevista ao UOL Tecnologia o compositor de 29 anos, ele próprio da geração que cresceu online.

"Já parou para se dar conta sobre o que fazemos no mundo virtual?", pergunta-se o jovem americano, sentado numa das 2.359 poltronas estofadas de veludo vermelho escuro do teatro, durante um intervalo entre os testes finais de luz e som. "O que as crianças estão fazendo quando as portas estão fechadas? Pensamos que estão lá no quarto, quietas, mas isso pode significar um universo completamente problemático no mundo digital."

Considerado um dos compositores da sua idade de maior destaque, Muhly, apesar de jovem, tem um extenso currículo. Com um diploma da Universidade Columbia em literatura inglesa e um mestrado da renomada escola de música Juilliard, ambas em Nova York, ele já compôs peças para diversas orquestras e balés e trabalhou com celebridades como a cantora Björk e o músico Philip Glass, além de ter composto para alguns filmes, incluindo "O Leitor", com o qual Kate Winslet ganhou o Oscar 2009 de melhor atriz. Também lançou quatro CDs. Two Boys é a sua primeira ópera a estrear, mas já tem outra no forno.

A produção, que tem apresentações até o dia 8 de julho no London Coliseum, já tinha dado o que falar antes mesmo da estreia. No vídeo promocional, um homem sai pelas ruas do centro de Londres perguntando às pessoas se querem ser suas amigas ou checar seu álbum de fotos. Foram mais de 1 milhão de acessos na rede.

"Apesar de não ter a ver com a trama da ópera em si, o vídeo nos faz questionar como levamos a nossa vida online", filosofa Muhly, que rejeita o propósito de passar uma lição de moral no público. "Eu queria simplesmente trazer à tona essas questões sobre o lado sinistro da internet, em que os jovens são os mais vulneráveis. Quem sabe com um tema atual não conseguimos atrair um público que geralmente não se identifica com ópera?", avalia.

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