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Computadores 'Frankenstein' levam cultura hacker à periferia de cidade no Pará

No Coletivo Puraqué, jovens aprendem a montar e a programar computadores - Reprodução
No Coletivo Puraqué, jovens aprendem a montar e a programar computadores Imagem: Reprodução

Camila de Lira

Do UOL, em São Paulo

24/04/2012 06h05

Divididas por uma fronteira, duas gangues se enfrentavam quase diariamente entre os bairros de Mapiri e Liberdade, na periferia do município de Santarém, no oeste do Pará. Bem perto desta área demarcada, dois jovens moradores resolveram usar os computadores de seus pais para mudar a situação.

Em 2000, Jader Gama e Tarcísio Ferreira pegaram dois computadores de suas famílias, colocaram na garagem de Gama e passaram a dar aulas de informática para os adolescentes: era o começo do projeto Puraqué. Enquanto do lado de fora os jovens de gangues diferentes lutavam uns com os outros, dentro da garagem do Puraqué, sentados nos computadores, eles se tratavam com educação e, até mesmo, cortesia.

“As pessoas pensam que é a tecnologia que transforma os territórios, mas são as pessoas e o que elas vão fazer com essa tecnologia que muda os lugares”, afirma Gama, agora coordenador do Puraqué. Em 12 anos, o foco mudou de apenas um ensino básico de informática para a capacitação de profissionais em programação, edição de vídeo e animação. “A gente passou de um momento de inclusão digital para um de cultura digital”, completa. 

Hoje em dia, o principal ponto do projeto está na reconstrução de computadores com peças antigas de outras máquinas, a chamada “metarreciclagem”.  O projeto recebe doações de empresas e bancos da região. Segundo Dennie Fabrizio, que também coordena no Puraqué, as máquinas são desmontadas e se aproveita todas as partes. As placas que queimaram ou estão fora de uso total são transformadas em outros objetos. “Surgiram outros tipos de coisas, como cabides e churrasqueiras feitas inteiramente de partes de computador”, diz Fabrizio.

O Projeto mistura a ideia de utilização mais inteligente dos recursos tecnológicos com o ideal ecológico da reciclagem. “Eu costumo falar que cada componente eletrônico jogado na natureza volta daqui a dez anos como tempero das nossas comidas”, afirma Fabrizio.

Ética hacker

Os novos computadores feitos no Puraqué só têm programas de código aberto, os chamados softwares livres.  Fabrizio aponta que o uso dos programas menos pesados melhora a vida útil das máquinas remontadas. Já Gama diz que a escolha tem a ver com a “ética hacker”, filosofia seguida pelo grupo.   

A “ética hacker”, define, significa que a construção do conhecimento é aberta, colaborativa e livre. Por isso, além de colocar tais programas nos computadores, eles fazem oficinas para a criação dos softwares. O projeto de Gama é ambicioso: ele quer que Santarém seja um polo de criação de software livre em cinco anos.

“Queremos que todo o jovem do Santarém ou do baixo Amazonas que queira entrar no caminho da tecnologia tenha essa oportunidade”, diz. Gama ressalta que a maioria dos cursos que o governo criou na região não tem a ver com a área tecnológica. “Por que um jovem vindo de uma casa humilde não pode ser um programador ou um designer? As tecnologias digitais não têm compreensão em cima da origem ou da cor de quem usa.”

Banda larga complicada

 

Gama aponta que as melhorias na infraestrutura de tecnologia da cidade proporcionaram o crescimento do projeto. Ele cita o Navega Pará, projeto do governo que leva pontos de internet sem fio e a rádio para cidades da região amazônica, como um facilitador das ações do Puraqué.

Mesmo assim ainda não é fácil ter uma conexão banda larga na região, como explica Fabrizio. Ele diz que a velocidade básica encontrada em Santarém é de 128 Kbps (kilobits por segundo), o equivalente à de internet discada. Ele ainda afirma que uma internet na velocidade de 1MB, a mais baixa de uma banda larga, chega a custar R$ 2 mil na cidade.

Moeda social: o Muiraquitã

Dados do Censo de 2010 do IBGE mostram que apenas 19% das residências do Pará têm um computador. Para tentar mudar este número, o Puraqué criou o “Muiraquitã”, uma “moeda social”.  “O Muiraquitã é uma coisa simbólica. As pessoas podem trocar a moeda por produtos recicláveis, como garrafas pets, ou fazendo algum tipo de atividade sobre a cultura digital, como uma palestra sobre software livre no seu bairro”, explica Jader Gama.

A cada 20 garrafas pets, a pessoa pode trocar por um Muiraquitã. A moeda serve para pagar matriculas e mensalidade das oficinas oferecidas pelo projeto, bem como para comprar computadores metarreciclados feitos no Puraqué. “Os alunos da oficina usam essa máquina, justamente, para melhorar as suas habilidades”, diz Dennie Fabrizio. Ele ainda afirma que um computador feito no coletivo chega a custar até R$ 50.

A capacidade das máquinas pode não ser igual à de uma de última geração. Mas é a capacidade daqueles que a utilizam que faz a diferença, afirma Fabrizio. “A cultura digital independe da capacidade das máquinas”, finaliza.