Falta de DNA é um dos problemas da cidade do futuro

Renato de Castro

Renato de Castro

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    Songdo, na Coreia do Sul, foi planejada do zero, mas não atrai moradores

    Songdo, na Coreia do Sul, foi planejada do zero, mas não atrai moradores

Hoje nossa história começa de outra forma! Como sonhar não custa nada nem paga imposto, imagine o desafio de construir uma nova cidade do zero – da primeira pedra ao último morador, tudo planejado nos mínimos detalhes. E tem mais, não deveria ser uma cidade qualquer. O objetivo aqui é levantar a 'cidade do futuro'. Passada a excitação inicial com a proposta, a primeira pergunta inevitável invade nossas mentes: de qual orçamento que vamos dispor para essa agradável missão? Relaxe! 130 bilhões de reais já reservados para os próximos 15 anos a fim de garantir uma execução milimetricamente precisa.

E se você não se encaixa nesse perfil de político ou urbanista para pensar em uma cidade nova, temos um lugar para você também nesta história. Imagine receber o convite para viver em uma cidade cheirando a nova. Apartamentos 100% conectados, não apenas online, mas também a uma rede local, na qual seus filhos poderiam ter aulas de inglês ou você poderia aprender, com sua vizinha, aquela receita especial de família, tudo por videoconferência. Sistema a vácuo de coleta de lixo diretamente da sua casa, ruas amplas e pensadas para uma mobilidade urbana perfeita. 40% da sua nova cidade harmonicamente coberta por áreas verdes. 100% dos serviços públicos totalmente digitalizados e disponíveis 24 horas no seu celular.

E ainda mais: um lugar onde todas as empresas internacionais teriam 100% de isenção de impostos. O pitch desta cidade parece perfeito, concorda? Seria o lugar dos sonhos de muita gente. Uma verdadeira cidade inteligente, não acha? Essa cidade existe e está quase pronta, mas, depois de 16 anos do início de sua construção, ainda não ocupa o tão sonhado posto de paraíso na Terra. E pior, muita gente provavelmente ainda nem ouviu falar dela.

Songdo, a utópica cidade futurística planejada da Coreia do Sul, começou a ser construída em 2002. Distante 40 quilômetros da capital Seul, a cidade foi construída em uma área de 600 hectares, com um plano urbanístico de dar inveja a qualquer cidade madura. Ela foi planejada para receber mais de 300.000 pessoas. 2015 havia sido a data inicial fixada para que esse projeto estivesse 100% operacional. Essa previsão foi estendida para 2018 e, mais recentemente, para 2022. Em pleno coração da Ásia rica, a cidade conta atualmente com somente 70.000 habitantes e luta incansavelmente para atrair mais pessoas e empresas.

Dinheiro público abundante, vontade política, investidores privados, perfeição no planejamento e na execução. Com todos esses atributos positivos, o que deu errado com Songdo? Na verdade, esse não é o único projeto de nova cidade ou urbanização tipo greenfield que está sofrendo para decolar. Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, King Abdulah District, na Arábia Saudita e algumas outras na China são exemplos de cidades-futurísticas-fantasmas.  Você sabe o que todas elas têm em comum? Elas não têm um DNA!

Por terem sido pensadas em um papel e criadas do zero, elas não têm história. Não há vínculos entre seus recém-chegados cidadãos. Vizinhos não cresceram juntos nem frequentaram a mesma escola. As pessoas podem decidir mudar de cidade por incentivos financeiros, por mais oportunidades ou por menos violência. Mas, na verdade, o que elas realmente buscam é simplesmente algo que não estão encontrando em sua cidade natal. Bastaria um simples sinal de melhora, uma ponta de esperança, e elas não migrariam.

De forma geral, as pessoas têm uma profunda conexão com a sua cidade, muito mais do que com o seu estado, região ou país. Acredite, os cidadãos não querem uma nova cidade, mas, sim, uma cidade melhor para viver. A legítima cidadania, do pagamento de impostos ao exercício pleno da democracia, acontece nos limites geográficos dos municípios. Por isso, as cidades estão ganhando cada vez mais protagonismo no cenário mundial. Estamos vivenciando um fenômeno que vários autores estão chamando de a Nova Era das Cidades-estados. E é só o começo.

Em somente dois anos (2020), o mercado de cidades inteligentes estará movimentando R$ 1,3 trilhão, segundo a conceituada empresa britânica de consultoria Arup. Mobilidade, energia, saneamento, educação e saúde estão ganhando cada vez mais protagonismo e atenção dos investidores privados. Estamos vivendo um ciclo muito favorável para atração de investimentos aos projetos urbanos. Não somente a necessidade de atenuar os problemas urbanos, mas também a forte influência da nova economia compartilhada, têm impulsionado esse 'momentum de cocriação' de cidades melhores. Não podemos perder essa oportunidade.

Chamamos o primeiro princípio do conceito SmartUp de "city-pitch". Trata-se de um olhar para dentro da cidade. Consiste em fazer uma reflexão profunda sobre a história de sua cidade, como a sua cidade se percebe e como ela é percebida. Decifrar e entender profundamente o DNA da cidade, compreendendo como ele influencia seu potencial e vocação de forma direta, é fundamental para começarmos a planejar os projetos de cidades inteligentes.

Esse exercício deve ser feito envolvendo o poder público, a iniciativa privada, a academia, o terceiro setor e principalmente os cidadãos. Uma das metodologias de sucesso para esse processo, que está sendo atualmente testada na Europa, se chama "Marketing Thinking". Consiste na aplicação do design thinking, ferramenta de solução de problemas criada no universo do design, aliada a modernas ferramentas de marketing, para construir, de forma criativa e conjunta, uma narrativa nova e eficiente para as cidades se 'venderem'.

O Brasil não está fora deste jogo. Pelo contrário, nossa alta taxa de urbanização, a solidez de nossa democracia e o robusto mercado consumidor que temos em nossas cidades nos proporcionam uma grande vantagem competitiva para a atração de investidores. Pensando como uma startup, o nosso objetivo neste primeiro passo é criar o nosso city-pitch. Uma apresentação sucinta e impactante para atrair investimentos para nossos projetos urbanos. E, acredite, se conseguirmos incorporar o DNA de nossa cidade a uma boa apresentação, não faltarão interessados em investir!

Você percebeu que já começamos a tornar a sua cidade mais inteligente? No meu próximo texto, vamos discutir a importância do segundo princípio do conceito SmartUp: "Keep it Simple". Entenderemos como projetos simples, com baixos custos e alto impacto social, são fundamentais no nosso planejamento de cidades inteligentes. Então nos vemos na próxima semana. Let's SmartUp!

Renato de Castro

Renato de Castro é expert em Cidades Inteligentes. É embaixador de Smart Cities do TM Fórum de Londres, membro do conselho consultivo global da Leading Cities de Boston e Volunteer Senior Adviser da ITU, International Telecommunications Union das Nações Unidas. Acumulou mais de duas décadas de experiência atuando como executivo global. Renato já esteve em mais de 30 países, dando palestras sobre cidades inteligentes e colaborando com projetos urbanos. Atualmente, reside em Barcelona onde atua como CEO de uma spinoff de tecnologia para Smart Cities.

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