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Como os bilionários de tec driblam impostos por meio de filantropia

Populares no Vale do Silício, as DAFs permitem abatimentos fiscais sem ações de caridade - Brian Britigan/The New York Times
Populares no Vale do Silício, as DAFs permitem abatimentos fiscais sem ações de caridade Imagem: Brian Britigan/The New York Times

David Gelles

07/08/2018 04h00

No final de 2014, Nicholas Woodman, fundador e diretor executivo da GoPro, anunciou o que parecia ser um extraordinário ato de generosidade.

Woodman, então com 39 anos, havia acabado de abrir o capital de sua empresa de câmeras que subitamente passou a valer cerca de US$ 3 bilhões. Agora, ele estava dando grande parte dessa riqueza -- cerca de US$ 500 milhões em ações da GoPro -- para a Fundação Silicon Valley Community, uma organização sediada em Mountain View, Califórnia, que abrigaria os ativos da recém-formada Fundação Jill e Nicholas Woodman.

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"Acordamos todas as manhãs gratos pelas oportunidades que a vida nos deu", disseram Woodman e sua mulher em um comunicado na época. "Esperamos devolver o favor da melhor maneira possível."

O executivo desfrutava de prestígio e gratidão. A revista "Chronicle of Philanthropy" havia nomeado Woodman como um dos “doadores mais generosos da América” naquele ano, o colocando ao lado de filantropos já estabelecidos como Bill e Melinda Gates e Michael Bloomberg.

Mas, quatro anos depois, quase não há vestígios da Fundação Woodman, ou dos US$ 500 milhões. A fundação não tem site, não listou suas áreas de foco e não se sabe quais doações significativas foram feitas a organizações sem fins lucrativos. Uma extensa pesquisa de registros públicos resultou em apenas um beneficiário: o "Bonny Doon Art, Wine and Brew Festival", uma ajuda a uma escola primária na Califórnia.

Em vez disso, a Fundação Woodman existe essencialmente como uma conta dentro da Fundação Silicon Valley Community, que não é obrigada a revelar detalhes sobre como, se for o caso, doadores individuais gastam seus dólares de caridade. Woodman, GoPro e a Fundação Silicon Valley Community se recusaram a falar sobre a Fundação Woodman.

Se o benefício para os necessitados é difícil de se ver, o favorecimento para Woodman é claro. Após a oferta pública inicial da GoPro, ele enfrentou uma enorme taxa de impostos em 2014. Mas ao fazer doações pela Fundação Silicon Valley Community, ele aliviou sua carga tributária de duas maneiras. Em primeiro lugar, Woodman evitou pagar impostos sobre ganhos de capital de ações que valem US$ 500 milhões, uma cobrança de tributos que provavelmente teria sido de dezenas de milhões de dólares. Ele também pode pedir uma dedução de caridade que provavelmente o fez economizar milhões de dólares e, provavelmente, reduziu seus impostos pessoais nos próximos anos.

Woodman conseguiu essa atraente combinação de eficiência e sigilo fiscal usando um fundo assessorado por doadores -- uma espécie de conta-corrente de caridade com sérios benefícios fiscais e pouca ou nenhuma responsabilidade.

Os fundos de doações direcionadas, ou DAFs, na sigla em inglês, permitem que indivíduos ricos como Woodman dêem ativos -- geralmente dinheiro e ações, mas também imóveis, arte e moedas criptografadas -- a uma organização patrocinadora como a Fundação Silicon Valley Community, a Fidelity Charitable ou a Vanguard Charitable. Mas enquanto os doadores se separam do dinheiro, eles não abrem mão do controle. As organizações patrocinadoras fazem doações para hospitais, escolas e similares apenas a pedido do doador. Assim, enquanto os doadores desfrutam de benefícios fiscais imediatos, as instituições de caridade acabam tendo de esperar pelos fundos por um tempo indefinido, e talvez para sempre.

Por estas e outras razões, os DAFs se tornaram uma das questões mais controversas no mundo da caridade.

Os defensores dizem que os DAFs democratizaram a doação, porque são simples de criar e os indivíduos que os utilizam são mais generosos do que aqueles que estabelecem fundações familiares. "É uma situação ganha-ganha", disse Greg Avis, presidente interino da Fundação Silicon Valley Community. “O doador recebe um benefício fiscal e os beneficiários são as organizações sem fins lucrativos.”

Mas para os críticos, os DAFs representam o pior da filantropia hoje -- um sistema de vantagens garantidas para os ricos e de incerteza para o resto.

Ao contrário das fundações familiares, que são obrigadas a distribuir 5% de seus ativos a cada ano e têm sido historicamente a forma como os doadores ricos desembolsam seu poder de fogo filantrópico, os DAFs não têm requisitos de distribuição, o que significa que bilhões de dólares destinados à caridade podem ficar ociosos por décadas. E como as organizações que gerenciam DAFs não precisam informar quais fundos geram dinheiro para quais causas, é impossível saber quanto dinheiro os doadores individuais estão dando a organizações sem fins lucrativos.

Pouca transparência

A ascensão dos DAFs também é parte de um movimento mais amplo dos ricos e poderosos para proteger grande parte de suas doações do escrutínio público. No mês passado, após lobby de grupos conservadores e doadores, o governo Trump disse que pararia de exigir que certas organizações sem fins lucrativos divulguem os nomes dos grandes doadores, uma mudança que tornará mais fácil para alguns grupos políticos esconder seus financiadores. 

“O mundo da filantropia está se tornando menos transparente, e isso não é uma coisa boa”, escreveu David Callahan, autor de “The Givers”, um livro de 2017 sobre a grande filantropia, em um ensaio recente. 

O fato de os DAFs terem se tornado tão populares entre os bilionários do Vale do Silício só aumentou a intriga ao redor do fundo. "Eles são uma fraude para o contribuinte americano", disse Ed Kleinbard, professor de tributos da Universidade do Sul da Califórnia (USC). "Eles são um caminho para os ricos terem o melhor de dois mundos".

Fundos favoritos do Vale do Silício

Os fundos de doações direcionadas em sua forma atual existem desde 1991 e atraíram alguma atenção do Congresso em 2006. Mas ultimamente a popularidade dos DAFs aumentou.

Em nenhum lugar o crescimento foi mais surpreendente do que no Vale do Silício. Entre os bilionários que estabeleceram DAFs na Fundação Silicon Valley Community estão Mark Zuckerberg do Facebook, Reed Hastings da Netflix, Jack Dorsey do Twitter, Sergey Brin do Google, Jan Koum e Brian Acton do WhatsApp, e Paul Allen da Microsoft.

Aproximar-se da Fundação Silicon Valley Community depois que uma empresa de tecnologia apresenta lucro inesperado se tornou um padrão familiar. Em dezembro de 2012, apenas alguns meses após o Facebook abrir o capital, Zuckerberg doou US$ 500 milhões em ações da empresa para o grupo. Em 2014, logo após o Facebook ter adquirido o WhatsApp por US$ 19 bilhões, Koum e Acton doaram US$ 846 milhões para a fundação. Em ambos os casos, o estabelecimento de DAFs permitiu que os empresários colhessem uma vantagem fiscal substancial justamente quando mais precisavam.

Parte desse dinheiro é usada rapidamente. Zuckerberg usou seu DAF para doar dezenas de milhões para escolas e hospitais na área de San Francisco. Hastings usou seu DAF para doar à Hispanic Foundation of Silicon Valley e ao United Negro College Fund. Em cada caso, os doadores divulgaram voluntariamente suas doações.

Organizações que gerenciam DAFs dizem que a maioria de seus correntistas é igualmente generosa. A Fundação Silicon  Valley  Community distribuiu US$ 1,3 bilhão durante o último ano fiscal para grupos que incluem o Distrito Escolar Unificado do Sul de São Francisco e o Museu de Arte Moderna de São Francisco. A Schwab  Charitable, outro grande patrocinador de DAFs, disse que distribuiu quase US$ 2 bilhões durante o último ano fiscal.

"Eu fico perplexo com os detratores", disse Pamela Norley, presidente da Fidelity Charitable, que fez cerca de US$ 4,5 bilhões de doações por meio de DAF durante o ano fiscal de 2017. “O dinheiro não está apenas ali. Está saindo em grandes volumes.”

Timing perfeito

No entanto, no caso de Woodman, há motivos para questionar quanto dinheiro foi disponibilizado para caridade. Ele estabeleceu seu DAF um dia depois que as ações da GoPro se aproximaram de seu preço mais alto, cerca de US$ 95 por ação. De uma perspectiva financeira, Woodman não poderia ter cronometrado sua doação com mais perfeição.

A notícia de sua doação fez com que as ações da GoPro caíssem até 14% no dia seguinte, com os investidores interpretando o movimento como uma falta de confiança nas ações. Até o final do ano, a GoPro havia perdido mais de um terço de seu valor. Até o final de 2015, as ações foram negociadas perto de US$ 18 cada. Hoje, a GoPro vale menos de US$ 6 por ação.

Como as ações da GoPro despencaram, a Fundação Silicon Valley Community manteve as ações, evitando a diversificação até “mais tarde em 2015”, de acordo com Woodman, que discutiu brevemente seu DAF em 2016 durante uma conversa “Pergunte-me Qualquer Coisa” no site Reddit. Embora os investidores tenham sofrido perdas acentuadas, e o valor do DAF de Woodman provavelmente tenha diminuído drasticamente, sua economia fiscal foi atrelada ao valor recorde das ações.

"Os doadores inteligentes têm jogado com o tempo de dedução de caridade por um longo período", disse Roger Colinvaux, professor de tributos da faculdade de direito da Universidade Católica da América. “Neste caso, ele potencialmente obtém uma dedução muito grande e não entrega nada. Esse é um problema preocupante de política pública ".

No Reddit, Woodman sugeriu que sua riqueza estava atingindo instituições de caridade: “A Fundação passou a financiar causas que apoiam mulheres e crianças e continuarão a fazê-lo!!!!” Quanto dinheiro foi para quais organizações, é claro, permanece um mistério.

Tradutor: Thiago Varella