Opinião: falta de neutralidade na web fará internauta pagar "mais pedágios"
Após tantos anos de debate, deve ser finalmente votado, na próxima quarta (6), o projeto do Marco Civil da Internet. Ao longo das discussões, tornou-se ainda mais óbvia a importância da internet como meio de expressão social: são 105 milhões de internautas no Brasil e cerca de dois bilhões no mundo. O relator do projeto, deputado Alessandro Molon, tem demonstrado energia na defesa de um texto que reflita os interesses da sociedade. Mas, como sempre, é preciso estar alerta para as pressões de setores que pretendem se sobrepor ao bem maior de uma internet verdadeiramente livre e aberta.
A Abranet (Associação Brasileira de Internet), que reúne mais de 300 provedores de serviços e conteúdos por meio digital, tem se pronunciado publicamente, desde o início, com posições claras a favor da internet.
Um dos pontos básicos do projeto - e o que mais está em risco - refere-se à neutralidade de rede. Parece um conceito reservado apenas à compreensão dos técnicos, distante dos interesses dos tantos milhões de internautas, mas é o oposto. Esta é a chave para a manutenção da internet livre e aberta como tem sido até agora. Se o tratarmos como um tema para experts, sem decifrar este "enigma", corremos o risco de deixar os detentores da infraestrutura de banda larga (as empresas telefônicas) intervir como quiserem no livre fluxo de criação de sites e dados, mudando assim o espírito da igualdade dos conteúdos, serviços e negócios inovadores na rede.
Para entender
O que é o marco civil? Projeto de lei que estabelece "princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil". As determinações do projeto dizem respeito aos usuários de internet, os provedores de conexão, provadores de conteúdo e o governo. |
Quais são dos direitos e garantias estabelecidos pelo marco civil? Os destaques do projeto são: o direito à privacidade, o sigilo das comunicações (salvo em casos de ordem judicial), direito a não suspensão da conexão, a manutenção da qualidade contratada da conexão e informações claras e completas sobre coleta, uso, tratamento e proteção de dados pessoais |
Não é tão complicado como parece. Os serviços e redes de telecomunicações funcionam como uma malha de ruas e estradas, por onde trafegam os “carros” (os internautas) por todos os sites disponíveis (conteúdos jornalísticos, de entretenimento, além de serviços como e-mails, redes sociais etc.). As empresas telefônicas cobram dos internautas para trafegarem na internet em diferentes velocidades, de acordo com o plano que cada um quer ou pode pagar.
Segundo pesquisa da Mesuring Information Society, hoje 45% dos lares brasileiros pagam mensalidades a estas empresas de banda larga. Até aí, tudo bem: atualmente, após pagar o “pedágio”, o internauta pode trafegar livremente pelas “estradas” que preferir, com acesso a todos os serviços e conteúdos. A regra da neutralidade de redes garante que as condições de acesso aos sites sejam iguais, sem privilégio a nenhum serviço ou conteúdo. A única limitação é o limite de velocidade contratado.
Mas as empresas telefônicas, além de cobrarem dos usuários pelo limite de velocidade, querem cobrar em função de onde e o que o carro esta fazendo, ou seja, querem poder intervir também na navegação dos internautas e na sua liberdade de escolha dos conteúdos, favorecendo os seus parceiros ou os que puderem pagar mais.
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Por meio de mudanças aparentemente sutis no texto original do relator, buscam alterar radicalmente o espírito da internet livre. Impor barreiras ou prioridades para o acesso a determinados conteúdos é limitar a liberdade de acesso à informação. É tornar a internet uma rede limitada. Usando novamente a analogia: com a neutralidade é possível ao internauta alugar um “carro” com o tamanho e potência de motor que escolher, sendo-lhe reservado o direito de ir e vir. Se o lobby das empresas telefônicas prevalecer, o carro alugado circulará apenas por determinados locais definidos por elas, ou então mediante o pagamento de mais pedágios.
Convém não esquecer também de outra questão colocada no Marco Civil, que é a retirada dos conteúdos da internet. Hoje, quem produz e divulga conteúdos responsabiliza-se por eles, inclusive em juízo.
Quando se trata de inserção de conteúdos em plataformas de terceiros, o responsável pela plataforma é obrigado a retirar do ar um conteúdo tão logo receba uma ordem judicial com esta determinação ou, mesmo sem ordem judicial, por violação de suas políticas de uso, como é o caso de conteúdos postados que tenham conotação evidentemente criminosa, como pedofilia. Mas algumas instituições sugerem a retirada do conteúdo mediante o simples pedido de um interessado, sem que o responsável pela plataforma tenha segurança de estar agindo da forma justa e correta.
É como se a editora de livros fosse obrigada a retirar partes de uma publicação mediante a simples comunicação por um interessado que sequer precisa ter qualquer relação de propriedade intelectual com a matéria publicada. É necessário, neste ponto, aprofundar a discussão dos requisitos mínimos para retirada de um conteúdo antes que passe a vigorar tal dispositivo, de modo a não colocar em risco valores sociais inegociáveis, como a liberdade de expressão.
Na próxima quarta talvez tenhamos uma das decisões mais relevantes da Câmara dos Deputados para a definição do futuro do país. Espera-se que a Câmara exerça a sua função de forma independente de interesses econômicos desmesurados, de modo que tal lei represente a vontade da sociedade, especialmente dos internautas, em prol da neutralidade. Só assim teremos a proteção de todos contra interferências das operadoras de telecomunicações no conteúdo que acessamos, sejam jornalísticos ou vídeos, redes sociais, e-mails, comércio eletrônico etc. Não vamos deixar que as empresas de telecomunicações restrinjam o desenvolvimento da internet.
* Eduardo Fumes Parajo - é presidente do conselho consultivo superior da Abranet (Associação Brasileira de Internet) e membro do CGI (Comitê Gestor da Internet).
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