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Enviar-se numa caixa e incendiar corpo: há limite por sucesso no YouTube?

Abud Sadek, que se enviou por uma caixa; ao lado, Zoio no desafio do fogo no corpo - Arte/UOL
Abud Sadek, que se enviou por uma caixa; ao lado, Zoio no desafio do fogo no corpo Imagem: Arte/UOL

Marcos Sergio Silva

Do UOL, em São Paulo

23/07/2017 04h00

Guilherme Machado de Moura, 30, nunca havia pilotado uma moto até setembro do ano passado. Enquanto um amigo filmava, apossou-se de uma motocicleta Honda Lead e trafegou em um curto espaço em uma garagem de chão de paralelepípedos. A ação dura 15 segundos e termina com a queda de Moura e riscos em um dos carros do estacionamento. A moto também ficou riscada.

A ação gravada está concentrada no meio de um vídeo de 13 minutos e 26 segundos, que tinha 532.683 visualizações até sexta-feira (21). Moura é o Louco de Refri, cujo canal no YouTube tem 1.294.248 inscrições. Suas peripécias garantem views, curtidas e inscritos.

Esses três componentes geram outro fator: grana. Se muita ou pouca, vai depender de seu status como gerador de conteúdo. Nos últimos anos, protagonistas de canais na rede viraram celebridades. É o caso de Felipe Melo, tido como o precursor dos youtubers brasileiros, Kéfera e Jout Jout.

A proposta dessas personalidades, no entanto, é diferente da do Louco de Refri. Moura faz parte da galera dos desafios --uma geração que cresceu com os vídeos do "Jackass", atração da MTV que virou filmes em série baseados em desafios muitas vezes inconsequentes.

Louco de Refri - Reprodução YouTube - Reprodução YouTube
Imagem: Reprodução YouTube

Eu nunca tinha andado de moto, então não tinha como sair andando sem dar merda

Guilherme Moura, o Louco de Refri (na foto, a brincadeira que deu errado)

Everson Henrique de Oliveira, o Zoio, por exemplo, flerta bastante com os limites. Já ateou fogo ao corpo, se jogou em um rio e ficou sob um guarda-chuva em chamas. Seu maior feito, segundo ele, no entanto, foi colocar a mão em um formigueiro --o vídeo tem impressionantes 14,6 milhões de visualizações. “Ele faz umas coisas fora do normal, como arrancar um dente com alicate”, diz Moura sobre Zoio.

Abud Sadek rompeu a barreira dos seus fãs e virou notícia quando se autoenviou em uma caixa para um amigo. A saga de 24 horas, com poças de suor e náuseas, deu 7,6 milhões de visualizações no YouTube. Ele foi transportado entre bairros da cidade de São Paulo. "Não foi uma boa ideia", diz, durante o vídeo. "Não imaginei que fosse tão difícil. Estou com a bunda doendo", afirmou, enquanto era transportado dentro da caixa de papelão.

“O 'dar errado' é o melhor para o vídeo”, diz o Louco de Refri, que diz se inspirar mais na série americana de TV "Kenan e Kel", bastante popular no início dos anos 2000. “Não tem como forçar uma situação.” O vídeo em que desaba da moto, por exemplo, é um misto de ousadia e outro tanto de, digamos, azar --se você considerar que é azar cair de um veículo que nunca pilotou na vida.

“Você pode facilitar. Eu nunca tinha andado de moto, então não tinha como sair andando sem dar merda. Quando vi que ia cair, já caí. Bati num carro parado, a moto descontrolou e saí rolando. Já caí rindo. O dinheiro que ganhei com o vídeo paguei o conserto do carro, que era um Elantra.”

Geração "Jackass"

É preciso voltar 17 anos para chegar ao programa (e depois franquia de filmes) que inspirou essa geração. Da gangue original do "Jackass", programa de TV precursor de desafios como esse, exibido no Brasil na antiga MTV, um morreu em um acidente de carro (Ryan Dunn, em ação fora do programa), outro convive com o alcoolismo (Bam Margera) e Johnny Knoxville, o líder, fraturou seu pênis em uma pegadinha ao pular de uma motocicleta. “É como se eu tivesse uma espécie de brinquedo de cachorro lá embaixo”, disse ao canal VH-1 em 2015.

Johnny Knoxville, líder do "Jackass" - Larry Busacca/Getty Images/AFP - Larry Busacca/Getty Images/AFP
Johnny Knoxville, líder do "Jackass"
Imagem: Larry Busacca/Getty Images/AFP

O YouTube não se pronuncia oficialmente sobre essas brincadeiras, mas tem uma série de regras que os empreendedores de canais devem seguir. Uma delas é não colocar em risco a vida de quem grava e de outras pessoas. A rede de compartilhamento de vídeos só bane por meio de denúncias.

No dia 29 de junho, em um desses desafios, Monalisa Perez, 19, matou o marido, Pedro Ruiz, ao atirar contra o peito dele, protegido apenas por uma enciclopédia de capa dura, em Minnesota (EUA). O acidente foi transmitido por meio de um hangout do YouTube, a forma como são chamadas as transmissões ao vivo na rede. O alcance do vídeo foi baixo (30 pessoas assistiam), mas as consequências não: além da morte de Pedro, Monalisa, que está grávida, foi presa pelo crime praticado.

“Nunca vou fazer nada que envolva outra pessoa”, diz o Louco de Refri, que estrela um vídeo em que fogos de artifício são atirados contra um grupo de conhecidos seus. “Eu já tinha feito mil testes antes. E eu vi que não queimava, era só dor. Sempre prezo em primeiro lugar a graça. Ninguém vê graça em alguém se dando mal --vê graça no que dá errado. Você vai rir de um cara que levou um chute no saco porque vai levantar e tá tudo bem, mas não de um cara que teve o saco arrancado.”

A “academia” do youtuber

Essa busca incessante pelo chamado “like” --e os desafios impostos para que ele chegue, não importando o risco a que são submetidos-- é uma consequência do comportamento humano da aceitação, afirma o psicólogo Cristiano Nabuco, do Núcleo de Dependência da Internet, do Ambulatório de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

“Nosso cérebro foi feito para viver em sociedades --você se protege do ambiente hostil. Como a realidade permite que a gente não ande mais em bando, a rede social faz isso. Quem tinha mais vantagem antes era quem tinha mais força física --a figura do macho alfa. Hoje, quando esses jovens abrem uma rede social, se eles têm 3.000 seguidores, as características dessas pessoas são de machos ou fêmeas alfas. Isso faz com que o cérebro busque a atenção por meio de ações”, diz.

Cristiano Nabuco - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Quando esses jovens têm 3.000 seguidores, as características dessas pessoas são de machos ou fêmeas alfas. Isso faz com que o cérebro busque a atenção por meio de ações

Cristiano Nabuco, psicólogo do Núcleo de Dependência da Internet do HC-SP

O YouTube mantém uma escola de criadores de conteúdo. Ela é baseada em exemplos de sucesso, mas dá dicas de como o vlogger (nome de quem é uma personalidade de vídeo da internet) pode construir sua carreira. São posts sobre criação, desenvolvimento de marca e público.

A rede diz que o exemplo das histórias narradas nessa “academia” é de sucessos baseados em projetos de criadores de longo prazo. O segredo, afirmam, é que o produtor de conteúdo tenha algo autêntico para se comunicar --o like e a inscrição no canal seriam resultado desse trabalho. O principal alvo é o combate ao bullying e à violência, com mecanismos para denunciar conteúdo e comportamento ofensivos. Em canais que incentivam a prática, os usuários são banidos.

É mais fácil, no entanto, que um vídeo saia do ar porque usou uma trilha sonora protegida por copyright. Ele só volta se o conteúdo for corrigido. Pornografia, principalmente a infantil, sofre o banimento imediato, com denúncia automaticamente. A rede afirma que a apologia ao crime ou ao discurso de ódio é mais difícil de compreender e depender das denúncias dos usuários da rede de vídeos.

Os desafios de Louco de Refri e Zoio, no entanto, estão longe da mira da rede social. Essa galera do barulho vai continuar gravando, com celulares ou equipamentos melhores, suas altas confusões, como numa comédia adolescente da "Sessão da Tarde". “Eu sempre gostei desse tipo de humor, de comédia. As coisas erradas acontecem e saem errado, a gente prevendo ou não”, diz o Louco.