Menos sensores, mais sentidos: livro condena eletrônicos no mundo fitness
Depois de meses de treino, o corredor cruzou a linha de chegada. Conseguiu! Mas a foto da vitória não captura felicidade, superação nem cansaço. O que ela mostra é alguém de cabeça baixa que, em vez de comemorar, mexe no relógio, concentrado apenas em interromper o cronômetro.
O exemplo é real e se repete em diferentes versões, neste momento em que trocamos sentidos por sensores: o GPS diz para onde ir, a pulseira revela se você dormiu bem (e ajuda a bater a meta diária de 10 mil passos), o aplicativo indica o ritmo certo da corrida, a cinta registra batimentos cardíacos. A tendência é tema do livro recém-lançado nos EUA “Unplugged: Evolve from Technology to Upgrade Your Fitness, Performance & Conciousness” (desconectado: vá além da tecnologia para aprimorar sua boa forma, desempenho e consciência, ainda sem tradução para o português).
Desenvolvido por Brian Mackenzie (treinador e autor do livro “Unbreakable Runner”, ou corredor inquebrável) e Andy Galpin (diretor do Laboratório de Bioquímica e Exercício Molecular da Universidade Estadual da Califórnia, Fullerton), o livro defende uma relação mais consciente com a atividade física.
Estamos no começo de uma era em que o exercício físico está quase totalmente fora de nosso cotidiano, criando uma lacuna que tentamos preencher com atividades ditadas pela tecnologia
"Unplugged"
O principal problema aqui é o excesso --já existente em relação ao celular, ele chega agora a aplicativos e eletrônicos vestíveis que nos acompanham nas atividades físicas. Os especialistas chegam a falar em um comportamento obsessivo-compulsivo dos atletas, que ficam alucinados com as medições possíveis (há quem considere perdido um treino que, por algum motivo, não tenha sido monitorado). O livro alerta para essa constante medição, considerando que muitos não sabem interpretar as informações nas quais baseiam seus treinos.
Ou seja: os eletrônicos portáteis podem criar na atividade física um efeito parecido com aquele do dr. Google, a quem recorremos para --muitas vezes de forma equivocada-- identificar sintomas e diagnosticar doenças.
A ideia, porém, não é eliminar a tecnologia dos treinos: “Use o mínimo de tecnologia necessária, não o máximo de tecnologia que você acha que consegue gerenciar”, resume a publicação na seção de dicas (no último capítulo, os autores ensinam os leitores a “unplug”, ou desconectar).
Leia trechos da entrevista por e-mail com o autor Brian Mackenzie.
Como o uso de ferramentas tecnológicas para controlar a própria saúde pode trazer prejuízos?
Os batimentos cardíacos são um exemplo. Baseamos nossa atividade física nisso e muitas pessoas deixam de considerar todo o sistema respiratório como um indicador de saúde e de boa forma --apesar de ser tão importante, se não mais, do que os batimentos cardíacos.
Fitness [boa forma] não é saúde, fitness é meramente um subproduto da saúde. E usar a tecnologia para avaliar isso está nos distanciando de nossos comportamentos mais naturais
Brian Mackenzie, autor de "Unplugged"
Também é um erro pegar uma única referência --como o descanso ou o pico de batimentos cardíacos-- e usá-la para tirar conclusões sobre sua saúde e boa forma. Há centenas de referências que poderíamos usar para medir os sistemas do corpo humano e elas estão todas ligadas. Ainda assim, pegamos apenas alguns marcadores --batimentos cardíacos, peso etc.-- e chegamos a conclusões abrangentes, geralmente equivocadas.
Também precisamos nos lembrar de nosso mecanismo aguçado de autoconhecimento, que a tecnologia muitas vezes pode debilitar. Você não deveria precisar de um medidor de sono para saber se está ou não descansado. Se você se sente descansado, então está [descansado]. Se está se sentindo exausto, não está. Precisamos voltar a nos conectar com nossos instintos. Cansado? Vá para cama. Com fome? Coma. E por aí vai.
Podemos estar perdidos com tantos gadgets e dados coletados por eles, mas isso não seria parte da adaptação a novas tecnologias? Não vamos aprender a usar tudo isso simplesmente usando (mesmo que inicialmente de forma errada ou excessiva)?
A história é construída em cima do comportamento, e os usuários precisam entender isso. Aqueles que não são dependentes da tecnologia, que se mexem durante o dia e que comem uma dieta variada estão muito felizes com suas vidas. Aqueles que são dependentes de algo nunca estão felizes porque suas vidas são desequilibradas.
O livro deixa claro que você não é contra a tecnologia. Mas acha que a publicação pode transformá-lo em um inimigo da indústria tecnológica? Isso já aconteceu?
De forma alguma. Todos usamos tecnologia e se não evoluirmos com ela, seremos deixados para trás. Isso dito, o monitoramento da boa forma pode acrescentar uma nova camada ao vício em tecnologia de algumas pessoas. Isso pode virar uma obsessão insalubre, que as afasta dos relacionamentos e causa ansiedade.
É preciso olhar de forma honesta para a forma como você usa esses recursos, se eles estão ajudando ou criando obstáculos para você. Se os resultados são positivos, continue. Se não, talvez seja preciso considerar como usar a tecnologia com mais propósito e de uma maneira que o aproxime de alcançar seus objetivos.
Não sabemos quais os impactos desses hábitos no futuro. Mas quais seriam seus palpites? Como você imagina nossa sociedade se continuarmos usando a tecnologia desta forma?
Isso é relativamente previsível. Nosso comportamento determina o futuro e, se continuarmos como estamos, o controle e o poder farão com que a gente se destrua.
Nada se mostrou mais viável ou resiliente que a natureza e, se deixarmos este planeta, ele continuará funcionando sem nós, além de prosperar. Isso significa que precisamos mudar nosso comportamento. Precisamos aprender mais sobre nós mesmos, os outros e o mundo em volta de nós.
Aprender requer a capacidade de ser humilde e reconhecer nossa insignificância, que fica evidente quando estamos na natureza e completamente imersos nela --seja surfando em uma onda, escalando uma montanha ou qualquer outra coisa. Para aprender também precisamos estar atentos, comprometidos e totalmente presentes no momento. Não perdidos com distrações e equipamentos eletrônicos.
Se estiver preocupado em registrar algo para amanhã, você não vive o hoje. E precisamos viver intensamente o momento, pois não sabemos o que vai acontecer amanhã.
Que conselhos básicos pode dar para aqueles que não leram o livro?
Pesquisas mostram que olhar para imagens da natureza diminui a pressão arterial, melhora o estado mental e reduz inflamações. Os resultados são muito melhores quando de fato saímos e andamos em um parque, remamos em um lago ou pedalamos por uma trilha. Há também a questão social de sair de casa e encontrar pessoas. Portanto há benefícios para a saúde em cumprir o "desafio unplugged": saia de casa e fique 30 minutos por dia sem usar tecnologia.
Se usar tecnologia ao fazer exercícios físicos, faça de maneira a conectar aquilo que você está sentindo, aquilo que está acontecendo em seu corpo e também seu desempenho. Use esses medidores como ferramentas, não como fórmulas mágicas. Você também pode coletar informações para resolver uma questão específica. Entregar os dados a um treinador, para que ele os interprete, facilita: muitas pessoas não entendem a informação que coletam durante todo o dia.
Use o mínimo de tecnologia necessária, não o máximo de tecnologia que você acha que consegue gerenciar.
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