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Como seu CEP influencia a que filmes e músicas você tem acesso

João Paulo Vicente

Colaboração para o UOL Tecnologia

22/07/2018 04h00

Yasodara Córdova já morava há um ano em Cambridge, nos Estados Unidos, quando se viu numa situação curiosa em setembro de 2017. Como não raro acontece com as pessoas obrigadas a fazer malabarismo no controle de diversas assinaturas de serviços ligados a internet, ela se desorganizou e deixou a conta premium do Spotify expirar. Logo depois, a surpresa: não podia mais ouvir playlists com alguns de seus artistas brasileiros favoritos.

A mudança de país havia afetado aquilo que ela podia escutar ou não - resultado das particularidades no controle dos direitos autorais e dos interesses econômicos das plataformas. 

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As plataformas de streaming parecem ser a maneira mais eficiente que a indústria fonográfica e audiovisual encontrou para combater a pirataria. Depois de brigar a torto e direito e tentar combater a circulação de arquivos na internet nos anos 90 e começo dos 2000, encontraram um jeito de lucrar com isso.

Mas ficou um resquício dessa história: o DRM (Digital Rights Management), uma série de ferramentas tecnológicas que controlam como determinado arquivo pode ser utilizado. Para quem é mais das antigas, era o modelo de DRM que fazia com que um DVD comprado na Austrália, por exemplo, não rodasse no Brasil.

Ao baixar uma música no Spotify ou um vídeo no Netflix para assistir offline, o que impede você de ouvir ou ver esse conteúdo em outro tocador é o DRM. Há ativistas que criticam o modelo, por limitar o poder de escolha do usuário. A dificuldade, nesse caso, é que o modelo de negócios dessas plataformas depende disso.

O DRM mantém o equilíbrio do ecossistema dessas plataformas. No caso do Spotify, as remunerações são calculadas com base no número de execuções das músicas. Se você pudesse baixá-las e ouvi-las de outra forma, logicamente não teria como remunerar

Leo Wojdyslawski, advogado especializado em direitos autorais

Confusão

Mariana Valente, diretora do centro de pesquisa em direito e tecnologia InternetLab e uma das organizadoras do livro "Da rádio ao streaming: ECAD, direito autoral e música no Brasil" (como estamos falando de direitos autorais, vale ressaltar: o livro está disponível na faixa) vê a questão de outra forma.

Para ela, grande problema, na verdade, é a concentração do mercado em poucas mãos. “O Spotify ainda não é lucrativo. Alegam que será quando tiver mais usuários, mais catálogo, então eles caminham para ser cada vez mais monopolistas”, afirma. “Qual a chance de criar um serviço nacional competidor?”.

Ela explica que os direitos autorais são uma forma de ordenar bens que compensam o trabalho do autor (pelo menos em teoria), a indústria (que investiu no artista), e o usuário. Com a capacidade de investimento em lobby e a automatização do controle por algoritmos, só um desses interesses tem sido protegidos.

Mesmo com a automação por algoritmos para identificar conteúdo violado, ainda há muita confusão.  

O YouTube, por exemplo, tem uma ferramenta que identifica se o áudio ou imagens de um novo vídeo fere algum direito autoral e o exclui logo de cara, o que gera situações curiosas.

Em junho, os vídeos do canal da Press Information Bureau da Índia (o órgão oficial de relacionamento do governo com a mídia) não podiam ser acessados porque estavam ferindo os direitos autorais da… Press Information Bureau da Índia.

Por e-mail, o YouTube afirma que respeita os proprietários de direitos autorais e investe pesado em ferramentas de controle de conteúdo para isso. A plataforma também conta que tem mais de 75 milhões de arquivos de referência para identificar conteúdo proprietário no seu banco de dados, “um dos mais compreensivos do mundo”.

Netflix

A mensagem do YouTube de que o vídeo ‘não foi disponibilizado no seu país’ é um clássico, mas o caso mais emblemático é o do Netflix.

Em junho, o médico Edmilson Barbosa Filho foi à Rússia acompanhar a Copa do Mundo, com direito a uma parada na França no caminho. Em um raro momento de tédio em terras franceses, decidiu continuar a assistir sua série favorita no momento: Fargo. “Eu e minha mulher ficamos procurando sem entender por quê não encontrávamos no Netflix”, diz ele. O jeito foi ir de Dark.

“Isso tem a ver com limitações contratuais de distribuição de conteúdo”, explica Wojdyslawski. Os direitos sobre exibição de um filme, por exemplo, podem pertencer a empresas diferentes em países diferentes. “O usuário, claro, não tem culpa de nada e sofre com isso”, diz.

Em 2016, o CEO da Netflix Reed  Hastings afirmou que em ‘entre cinco e dez anos’ a plataforma teria um catálogo global unificado, mas a empresa não respondeu a pedidos de comentários para a reportagem. 

Spotify

No Spotify, a explicação é diferente. Em geral, não existe exclusividade na música como em produtos audiovisuais, mas por outro lado a empresa precisa negociar em separado tanto com a gravadora - que detém os direitos sobre o fonograma daquela versão em específico -, quanto com a editora - que representa os compositores.

“Então vamos dizer que o Spotify quer negociar os direitos de um CD de sertanejo universitário. É muito possível que os direitos sobre as composições sejam representados por uma ou mais editoras, enquanto sobre as gravações apenas por uma gravadora”, afirma Valente.

É fácil para o Spotify negociar de maneira global com gravadores - é um setor superconcentrado: as três maiores, Sony, Warner e Universal, já chegaram a deter 70% do mercado. As editoras, no entanto, costumam ser locais. “Quando o Spotify quer comprar um catálogo, pode ser uma negociação só para o Brasil”, explica ela.

No caso de artistas independentes, é comum usar agregadores, empresas como o ONErpm, que se encarregam de negociar e distribuir músicas - e clipes - para o Spotify e outras plataformas como Deezer, Apple Music, Google Play, YouTube, etc.

Para Yasodara, a solução foi assinar uma nova conta premium, desta vez no Spotify americano, que a permitiu acessar quase todas as músicas brasileiras das suas playlists.

Research fellow na Digital Harvard Kennedy School e dedicada a pesquisar inovação, ela chama atenção para um aspecto importante das plataformas de streaming. “A gente foi se acostumando com esse serviço, mas eles não estão dando conteúdo. Estão emprestando, não pode guardar, não pode transferir como herança. É um serviço subjugado as regras da plataforma, diferente de baixar um disco inteiro e dar dez conto para o cara.”