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Era do Erro 404: vamos perder a história registrada na internet?

Conteúdo da web e de redes sociais desaparece cada vez mais rápido  - Reprodução
Conteúdo da web e de redes sociais desaparece cada vez mais rápido Imagem: Reprodução

Anita Abdalla

Colaboração para o UOL Tecnologia

15/08/2018 04h00Atualizada em 16/08/2018 10h08

Aquela foto esperta quando cai na internet nunca mais desaparece, certo? Errado. Na verdade, há grandes chances dela sumir da rede e nunca chegar aos olhos dos seus filhos, netos ou bisnetos. 

Vinton Cerf, o pai da internet, ressaltou em um evento em Sydney que os sistemas computacionais, formatos de arquivos e ferramentas eletrônicas mudam a todo momento e, com isso, muito material publicado na rede desaparece - e isso vem acontecendo cada vez mais rápido.

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“Nós temos um grande problema. Eu chamo de 'a era das trevas digital'". Um dos exemplos que Cerf deu foram as publicações acadêmicas, com diversas referências, e o que vai acontecer quando daqui a dez, 20 ou 50 anos os domínios mudarem, forem abandonados ou simplesmente deixarem de ser pagos.

O curador digital da British Library, Aquiles Alencar Brayner, concorda: “Caso nada seja feito, o futuro tende a ser marcado pela escassez de fontes históricas. Não se pode pensar a história do século 21 sem levar em conta o que se é publicado na internet, incluindo as redes sociais. O século 21 vai se configurando como a ‘Era do Erro 404’”.

Retrato de hoje

Entre memes e textões, a internet é uma grande ferramenta de documentação dos tempos atuais. Lauro Ávila Pereira, professor e coordenador do curso de História da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e ex-diretor de preservação e difusão do arquivo público do estado de São Paulo, diz: "A internet é um elemento essencial como parte da cultura mundial. Para entender o século 21, tem que se considerar a internet e entender o impacto que ela causa na sociedade. Pensar nesse século sem pensar em internet, é como tentar entender o século 20 sem energia elétrica."

Ou seja, um textão no Face e um meme bem sacado podem ter tanto valor histórico quanto pinturas em paredes de cavernas. Pereira diz que é possível que daqui uma centena de anos, ao estudar o começo do século 21, tenha sumido um grande conjunto de dados que passaram por alguma mudança de sistema e não foram propriamente arquivados. “É preciso uma gestão pública que tenha no horizonte preservar informações que podem ser importantes para sociedade", diz Pereira. 

“É possível que possamos ler um texto num pergaminho, escrito a centenas de anos e não termos mais acesso a uma carta escrita 20 anos atrás por meio de um programa de processador de texto”, diz o professor da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília, Murilo Bastos da Cunha.

O que é perdido

Brayner afirma que 80% dos conteúdos publicados em páginas web e blogs desaparecem ou são modificados no período de um ano. “Isso se deve às mudanças de endereço de uma página web, ou mesmo porque os conteúdos destas páginas sofrem alterações sem se preocupar em registrar tais cortes ou incorporações”, diz.

Desde 1996, quase 4 milhões de endereços web foram registrados no domínio ".br". De lá para cá, cada página pode ter sofrido centenas de alterações durante o seu período de existência, o que nos dá uma ideia da quantidade de informações relativas à nossa cultura e sociedade atual que estão deixando de ser arquivadas. Muita coisa pode levar a perda de todo o conteúdo que estava ali: se a página em questão for privada, se o seu dono não pagar o servidor ou se simplesmente a empresa que hospeda fechar as portas. 

E essa perda não é exclusiva das páginas da web, mas também das redes sociais. Lembra do Orkut? O conteúdo daquela que já foi a maior rede social do Brasil, com quase 30 milhões de usuários, não pode ser mais acessado. Em 10 anos de funcionamento, foram produzidos bem mais do que scraps e testemunhos. Além dos conteúdos colaborativos das comunidades, a rede social poderia ser uma fonte histórica daquele momento do país. Será esse o futuro do Facebook?

Salvar como

Talvez, não. Segundo Cunha, a curadoria digital pode reduzir os riscos de obsolescência da produção online.

Salvar conteúdo da internet não é exatamente uma ideia nova. Por exemplo, o Internet Archive já existe há 20 anos e permite o acesso a 334 bilhões de páginas da web que estão arquivadas por eles. Para Cunha, a organização faz um papel primordial, que deveria servir de inspiração para um projeto similar por aqui. “Parte da memória brasileira está contida nas páginas e sítios da internet. Essa futura organização poderia ser criada por meio de um esforço conjunto entre os governos e as instituições privadas”, sugere.

Nesse sentido, Brayner aponta que para preservar os conteúdos de maneira eficaz e segura é necessário que os governos nacionais garantam o arquivamento das páginas Web. “O Chile vem realizando este trabalho há pelo menos oito anos como parte essencial do desenvolvimento e preservação de acervos da sua biblioteca nacional”.

O que deve ser preservado?

Segundo Brayner, isso envolve priorizar páginas web, blogs e perfis sociais (nesse último caso é necessária a autorização de seus donos), considerados pertinentes para nossa era.

Pensemos em um artista brasileiro com grande representatividade: Caetano Veloso. Sabemos que ele possui um perfil em redes sociais e escreve para blogs, estabelecendo um paralelo entre a sua produção artística e a sua visão de mundo 

Aquiles Alencar Brayner, curador digital da British Library

Pereira diz: “O que você guarda e como você guarda é fundamental.” E levanta o problema de como definir o que deve ser guardado e qual o critério a ser usado. “A história precisa de personagens mais importantes - mas quem são eles? Qual a perspectiva que você vai usar pra resolver isso? E como guardar toda essa informação? É preciso uma política de gestão de armazenagem, o ideal é salvar o máximo possível”.

Nas mãos de empresas

Muito desse conteúdo está nas mãos de empresas privadas, que nem sempre estão interessadas em acumular conteúdo digital. Voltamos ao Google: ao mesmo tempo que fomenta iniciativas de preservação digital por meio do grupo Google Arts and Culture, o Google não teve dó de acabar com o Orkut e todo o seu conteúdo. 

“Muitas organizações começam a preservar o seu acervo digital e isto deveria ser uma norma rotineira para todo o tipo de instituição, grande ou pequena, pública ou privada”, diz Cunha.

Enquanto as empesas não decidem o que fazer, instituições públicas se mexem. A Biblioteca do Congresso Americano (Library of Congresspassou a preservar parte das mensagens do Twitter como forma de garantir no futuro a possibilidade de uma análise da conjuntura política norte-americana por meio das mensagens postadas diariamente pelos políticos do país. 

E eles não estão sozinhos:  O National Archives no Reino Unido tem permissão do governo para arquivar as postagens do Twitter das contas dos ministérios nesse mesmo intuito

É indubitável o fato de que vivemos em uma sociedade da documentação. Desde o momento do nosso nascimento são criados dados a nosso respeito. No ambiente digital, a quantidade de pegadas que vamos deixando é infinitamente maior do que antes

Brayner

A premonição de Vint Cerf, então, ganha aspectos mais reais quando pensamos que é possível ir a um museu conferir diários escritos há centenas de anos, mas aqueles depoimentos que você trocou com seus amigos no Orkut se perdeu para sempre.