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Análise: Justiça deixou a desejar, alertamos sobre fake news no WhatsApp

Mulher segura placa com uma imagem do candidato a presidente Jair Bolsonaro durante um protesto em São Paulo - Nacho Doce/Reuters
Mulher segura placa com uma imagem do candidato a presidente Jair Bolsonaro durante um protesto em São Paulo Imagem: Nacho Doce/Reuters

Márcio Padrão

Do UOL, em São Paulo

03/11/2018 04h00

O combate à criação e propagação de notícias falsas —ou fake news, no jargão em inglês popularizado pelo presidente dos EUA, Donald Trump — foi uma das principais questões políticas em 2018 no Brasil. Em meio a acusações e denúncias entre os diversos campos ideológicos, saiu-se vencedor o novo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

Para o brasileiro David Nemer, professor no Departamento de Ciência da Informação da Universidade do Kentucky, a Justiça brasileira falhou neste ano ao tentar combater o fenômeno. "Não nos preparamos juridicamente para agir prontamente", disse.

Para ele, TSE teria sido lento em casos emblemáticos como o "kit gay" usado pela campanha de Bolsonaro, e a crítica do candidato Fernando Haddad (PT) que dizia que Bolsonaro votou contra a Lei Brasileira de Inclusão.

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Ainda assim, ele acredita que caberá ao Poder Judiciário o principal papel de combate à desinformação, que não deverá acabar após as eleições deste ano. "Cabe a ele desenvolver processos ágeis que possam identificar e punir os responsáveis respeitando os direitos assegurados pela Constituição Federal."

David Nemer, professor no Departamento de Ciência da Informação da Universidade do Kentucky - Reprodução/YouTube TEDx Talks - Reprodução/YouTube TEDx Talks
David Nemer, professor no Departamento de Ciência da Informação da Universidade do Kentucky
Imagem: Reprodução/YouTube TEDx Talks

UOL: Quais foram os fatores que levaram à crise política envolvendo as redes sociais, o WhatsApp, as eleições de 2018, as notícias falsas e a suposta manipulação de eleitores?

David Nemer: É possível ver um conjunto de fatores tanto no aspecto tecnológico quanto no social que evoluíram até chegarmos a tal ponto. Se você parar e analisar, sempre tivemos crises políticas, redes sociais, sejam elas online ou offline, eleições, notícias falsas e manipulação de eleitores; nada disso deve ser visto como novidade.

O diferencial dessas eleições foi o uso do WhatsApp que permitiu organizações de base e orgânicas onde o comportamento das pessoas foi amplificado. Vale lembrar que o WhatsApp foi o diferencial, mas não o fator decisivo. Em eleições passadas, já tivemos notícias falsas sendo distribuídas em panfletos, e também por blogs, como o PT fez em 2010.

Porém, hoje, a produção de tais notícias falsas é muito mais fácil e descentralizada, pois com o avanço das tecnologias, qualquer um pode fazer um meme, um vídeo editado ou até um portal de "notícias", e com a facilidade de distribuição de tal conteúdo no WhatsApp, diretamente nas "mãos" das pessoas, esse conteúdo acaba tendo a sua mensagem entregue com mais eficiência.

UOL: Como você analisa o papel das instituições brasileiras nessa conjuntura?

David Nemer: Eu acredito que deixou a desejar. Nós do meio acadêmico e científico alertamos tanto a sociedade quanto aos responsáveis por nossas instituições sobre o perigo das notícias falsas e como viria forte nas eleições de 2018. Nós ainda especificamos que seria no próprio WhatsApp que essa disseminação ocorreria.

Tal alerta se intensificou justamente depois das eleições de 2016 aqui nos EUA, onde cidadãos teriam sido influenciados a partir de ações de marketing oficiais da campanha, baseados no uso do perfil de milhares de usuários analisados pela empresa Cambridge Analytica. A própria CA tinha aberto um escritório em São Paulo para trabalhar nessas eleições, mas acabou fechando devido às investigações nos EUA e Reino Unido.

Porém não teria sido preciso ver o que ocorreu em outros países, já que nós mesmos já estávamos lidando com isso desde outras eleições. Portanto, mesmo ocorrendo no nosso país, não nos preparamos juridicamente para agir prontamente. Dois exemplos da morosidade do TSE foram o caso do "kit gay" usado pela campanha do Bolsonaro e a crítica do Haddad que dizia que Bolsonaro votou contra a Lei Brasileira de Inclusão.

Ambos não estavam errados [em rebater as notícias falsas]. Coube à imprensa e grupos como o Comprova a verificar tais informações, mas mesmo assim não deram conta de todas as notícias que foram fabricadas. Por mais que nossas instituições falharam, é preciso manter a confiança nelas, pois são elas que nos asseguram o estado democrático de direito.

UOL: O eleitor médio brasileiro está mais suscetível às notícias falsas, ou há um exagero nisso? O WhatsApp foi tão influente assim? Por que?

David Nemer: Eu acredito que todas as classes tenham sofrido uma certa influência dessas notícias. E pelo que venho analisando em minha pesquisa, a influência, a ponto de fazer alguém mudar de voto, foi pouca e afetou mais os indecisos, cuja parcela era muito pequena, principalmente no segundo turno. Muitas pessoas já tinham decidido o seu voto, tanto no Haddad, Bolsonaro, branco ou nulo.

O WhatsApp nada mais é do que a amplificação do nosso comportamento. Portanto, se antes eu só conseguia ligar para um ou dois amigos, que confiam em mim, para tentar mudar seus votos, com o aplicativo eu consigo mandar a minha mensagem para centenas em questão de segundos. Vale lembrar que não é o WhatsApp que nos faz ter tal comportamento; somos nós próprios, mas as capacidades das funcionalidades do aplicativo também tem consequências diferentes, como vemos hoje.

28.out.2018 - Eleitor de Bolsonaro celebra resultado das urnas em São Paulo, fantasiado de Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos - Miguel SCHINCARIOL/AFP - Miguel SCHINCARIOL/AFP
Eleitor de Bolsonaro celebra resultado das urnas em São Paulo, fantasiado de Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos
Imagem: Miguel SCHINCARIOL/AFP

UOL: E como você vê a polarização do eleitorado? Ela teria sido diferente sem a propaganda eleitoral por WhatsApp?

David Nemer: As notícias falsas contribuem imensamente para a polarização. Em qualquer grupo de cunho político, vêm com o propósito de dividir. Essa divisão objetiva cria um antagonismo, onde uma pessoa tem que escolher um dos lados —jamais podem ficar em cima do muro. Tais notícias circulam principalmente em grupos onde elas são instrumentais em assegurar que seus membros estejam certos de suas escolhas, contribuindo assim para inflar ainda mais cada bolha ideológica e o desinteresse pelo outro lado.

É difícil falar se teria sido diferente sem o WhatsApp, pois se não tivéssemos acesso a esse aplicativo, iríamos para outros como o Telegram, ou até mesmo o Facebook. Aplicativos alternativos para esse tipo de comunicação não faltam.

UOL: No jornal "The Guardian", você apresentou um levantamento sobre os diferentes perfis de usuários de redes sociais que apoiaram e votaram em Bolsonaro. Poderia fazer uma análise sobre os apoiadores do PT, Lula e Haddad?

David Nemer: Eu não posso fazer tal análise já que não fiz uma pesquisa similar com os grupos pró-Haddad. O perfil do petista já é bem conhecido e estudado. A infraestrutura que o PT utiliza para compartilhar conteúdo depende muito da sua militância, que faz um trabalho intenso tanto em suas sedes assim como no Facebook, como vimos em 2014.

Os apoiadores do Bolsonaro foram a novidade dessas eleições. Pouco se conhecia sobre eles e isso que motivou a minha pesquisa de quatro meses em grupos pró-Bolsonaro, onde coletei quase que 500 mil mensagens. Eu queria entender quais eram as atividades e dinâmicas de poder dentro desses grupos que mantinham os seus membros extremamente fieis, e trabalhando de forma voluntária e fervorosa.

Eles saíram na frente pois se organizaram de forma orgânica no WhatsApp. As descobertas da pesquisa não apontam o dedo aos apoiadores do Bolsonaro como os únicos a compartilhar notícias falsas, já que é possível encontrá-las favorecendo quase todos os candidatos. Eles mostram que os apoiadores vêm de todas as classes sociais, raças, e gêneros, o que desmitifica a presunção que eram em sua grande maioria homens de classes mais altas.

UOL: E como você acha que esses eleitores se posicionarão após as eleições? Que papel terão no novo governo?

David Nemer: Essa é a grande questão. Será que estarão destinados a monitorar de forma crítica o governo de Bolsonaro, ou servirão como um espaço para compartilhamento de propaganda governamental? Ainda é muito cedo para falar, mas após a vitória de Bolsonaro, muitos querem ficar no grupo para receberem notícias do presidente eleito e de seu governo.

Os membros desses grupos possuem uma grande desconfiança da mídia tradicional, e pelo visto, continuarão a utilizar esses grupos como fonte principal de notícias. O problema é que essas "notícias" contribuíram para a polarização, e nesse momento em que o Brasil precisa se unir, é necessário construir uma fundação baseada em honestidade e ter muita empatia para podermos dialogar novamente.

Fernando Haddad (PT) também divulgou informações falsas sobre Bolsonaro ter votado contra a Lei Brasileira de Inclusão - Reprodução/TV Aparecida - Reprodução/TV Aparecida
Fernando Haddad (PT) também divulgou informações falsas sobre Bolsonaro ter votado contra a Lei Brasileira de Inclusão
Imagem: Reprodução/TV Aparecida

UOL: Qual é o antídoto para trazer o olhar crítico ao eleitor novamente? A internet ainda pode ser útil nesse sentido?

David Nemer: A meu ver, a solução está mais relacionada a questões jurídicas e sociais do que tecnológicas, pois ainda não temos muitas tecnologias capazes de identificar fake news. E mesmo se tivéssemos, nenhum dano causado por notícias falsas se equipara ao dano de um mecanismo de remoção automática de conteúdo.

Portanto, a meu ver, está no poder judiciário o antídoto pela responsabilização da produção e compartilhamento de notícias falsas. Cabe a ele desenvolver processos ágeis que possam identificar e punir os responsáveis respeitando os direitos assegurados pela Constituição Federal. Com punições pontuais e exemplares, assim como um programa de conscientização da severidade de notícias falsas, creio que tais mecanismos poderiam servir como diminuição delas.

UOL: A nova Lei de Dados Pessoais, a vigorar em 2020, daria outro rumo às eleições de 2018? [Na denúncia da Folha de S. Paulo, é dito que empresários podem ter obtido ilegalmente telefones de eleitores para disparos em massa no WhatsApp, usando bases de dados de empresas de cobrança]

David Nemer: Com certeza, já que a coleta de dados exigirá um consentimento dos usuários e para que as empresas possam compartilhá-los será preciso um aval inequívoco do cidadão.

Ou seja, não é porque as pessoas têm o email ou telefone disponível no perfil deles, que qualquer um pode se apropriar daquela informação e utilizá-la da forma que bem quiser. Tanto a coleta quanto a utilização dos dados terão que ter a autorização do usuário.

UOL: Se o TSE não resolveu o problema neste ano, como fica? Como a sociedade deveria reagir à morosidade do órgão nas eleições neste ano?

David Nemer: Eu creio que está faltando à nossa sociedade uma reflexão sobre o que realmente valorizamos. Se queremos ética e honestidade, será que vale a pena compartilhar uma notícia falsa mesmo que essa beneficie o meu candidato? Será que vale a pena ganhar a qualquer custo? Enquanto não engajarmos de forma educacional e crítica com o papel da tecnologia na sociedade, será muito difícil também a nossa sociedade agir prontamente.

UOL: Denúncias importantes correm o risco de serem deixadas de lado porque a Justiça e a polícia não sabem como avançar na investigação e apuração? Como se resolve essa situação?

David Nemer: Muita coisa já mudou. Por mais que as investigações tomem tempo, a Justiça e polícia também vêm se modernizando. Hoje temos delegacias de crimes virtuais que possuem tanto a tecnologia quanto o conhecimento para resolverem tais crimes.

Vale lembrar que a maioria dos crimes virtuais não é feita por hackers supercapacitados, mas sim por pessoas que não possuem tanto conhecimento tecnológico e acabam por deixar traços digitais que levam à resolução do crime. Eu sempre recomendo a pessoas a fazerem BOs nessas delegacias e procurar um advogado especializado em crimes digitais.

Ministra Rosa Weber, presidente do TSE; entidade foi criticada por lentidão no combate às notícias falsas, além de ter idoneidade questionada na votação da urna eletrônica - Roberto Jayme/Ascom/TSE - Roberto Jayme/Ascom/TSE
Ministra Rosa Weber, presidente do TSE; entidade foi criticada por lentidão no combate às notícias falsas, além de ter idoneidade questionada na votação da urna eletrônica
Imagem: Roberto Jayme/Ascom/TSE

UOL: Que caminho o WhatsApp deveria trilhar para os próximos anos, para evitar o que aconteceu neste ano?

David Nemer: O WhatsApp pode desenvolver diversas funcionalidades para limitar a comunicação e diminuir o compartilhamento de notícias falsas. Limitar o número de mensagens compartilhadas por dia, restringir o número de anúncios e números de membros em cada grupo. Porém, vale lembrar que tais medidas podem comprometer a liberdade de expressão e comunicação.

UOL: E a Justiça e o governo brasileiro, precisam tomar medidas mais duras contra o app? E como fazer isso sem criar algum tipo de censura no uso da tecnologia e redes sociais?

David Nemer: Não acho que o governo precisa tomar medidas contra o aplicativo, e sim contra as pessoas ou organizações que trabalham de forma ilícita e utilizam o WhatsApp a seu favor. Em 2010 o Orkut e blogs foram utilizados para disseminar fake news, em 2014 o Facebook foi o mais usado para tal finalidade, em 2018 tivemos o WhatsApp, e 2022 com certeza teremos outra ferramenta sendo utilizada. Então não adianta agir diretamente em uma tecnologia, pois uma nova surgirá. É preciso ir à raiz do problema através de mecanismos jurídicos.