A guerra da internet móvel

Como a treta China x EUA pode afetar sua banda larga

Helton Simões Gomes Do UOL, em Barcelona (Espanha)*

Estados Unidos e China se enfrentavam até agora em uma guerra de trincheiras pela liderança da revolução que está para fazer a internet móvel ficar 20 vezes mais rápida no seu celular. Até esta semana.

No Mobile World Congress (MWC), o maior evento de tecnologia móvel do mundo, o que era uma troca esporádica e nos bastidores de farpas virou uma batalha a céu aberto. No centro da disputa, o 5G, a nova geração de internet banda larga que vai suceder o 4G.

As duas potências disputam megabit a megabit quem vai dar as cartas num mundo conectado à internet, de carros autônomos a drones. Os dados valerão cada vez mais e quem dominar os caminhos por onde eles andam terá poder sobre outros países. Enquanto os EUA entram na treta de corpo e alma, o lado chinês é representado pela Huawei, a líder mundial em equipamentos de telecomunicação.

As armas usadas estão longe de serem virtuais, e o desfecho da guerra pelo 5G será real: moldará o futuro da internet.

Mas o que é 5G?

Da mesma forma que a eletricidade hoje dá vida aos eletrodomésticos, a briga é pela conexão que fará da internet definitivamente algo onipresente.

Rafael Steinheuser, presidente da Qualcomm para América Latina, diz que o salto evolutivo da sociedade será tão grande que a banda larga de quinta geração poderá ser comparada outras inovações como a domesticação dos animais, a imprensa de Guttemberg, a máquina a vapor, a eletricidade e ao automóvel:

O 5G é uma tecnologia de propósito geral, que não só afeta uma área da economia, mas também a humanidade como o todo

O setor de telecomunicações agiu em ondas, diz Tiago Machado, diretor de relações institucionais da Ericsson. Primeiro, os países foram conectados com cabos submarinos de telégrafo, no século 19. Depois, as casas se ligarem umas às outras com a telefonia fixa. Então, as pessoas se conectaram entre si, com o celular e a internet móvel.

A quarta fase é a da conexão das coisas, das indústrias e dos serviços que a gente conhece

  • 1

    Download ágil

    A capacidade de transmissão de dados passa de megabits/segundo para gigabit/segundo, algo entre 20 a 100 vezes mais rápido

  • 2

    Tempo de resposta

    A latência (tempo de resposta entre um aparelho e seu servidor) será de um centésimo do que é hoje. No 4G, um carro autônomo a 100 km/h leva 28 metros para frear após o acionamento dos sensores; com o 5G, isso cai para 3 cm.

  • 3

    Conexões em massa

    A rede será robusta o suficiente para permitir que diversos aparelhos sejam pendurados sem que isso cause um congestionamento.

Recalque das inimigas?

Para tudo isso funcionar, é preciso investir em novos equipamentos de telecomunicação. E é aqui que o bicho pega. Há tempos, a maior fornecedora nessa área é a chinesa Huawei, que ultrapassou as tradicionais Ericsson, sueca, e Nokia, finlandesa.

Percebeu? Não mencionamos nenhuma empresa norte-americana. Os EUA precisam recorrer a estrangeiras.

Nessas, a terra do Tio Sam virou o maior mercado para a Ericsson, e o governo começou um campanha de boicote à líder mundial. Os americanos nutrem as seguintes suspeitas sobre a chinesa:

  • Como ela chegou à liderança?

Ela é acusada de roubar propriedades intelectuais de empresas norte-americanas.

  • Com quem ela faz negócio? 

A chinesa é acusada de vender produtos com tecnologia Made in USA a países que sofrem embargo, como Irã e Coreia do Norte.

  • O que ela pode fazer na dianteira? 

Os EUA acreditam que a Huawei pode sofrer pressão do governo chinês para espionar outros países.

Os disparos dirigidos à Huawei são resultado da percepção de que os EUA ficaram para trás numa tecnologia estrategicamente importante. Tem pouco a ver com segurança e tudo a ver com o desejo da América de suprimir um concorrente

Guo Ping, presidente rotativo do conselho da Huawei

É uma competição para ver quem chega primeiro. Isso vale muito dinheiro e estrategicamente é importante para toda a indústria. O fato de a Huawei ter avançado e ter um mercado enorme dá uma vantagem competitiva inicial que os outros estão tentando contrabalançar

Raul Cholcher, presidente da Questera Consulting e membro da IEEE

Investida da Casa Branca

  • 1

    Processo na Justiça

    Abriu processo alegando que a Huawei roubou especificações técnicas de um robô para testar celular da T-Mobile e dava bônus a funcionários por informações surrupiadas de outras empresas

  • 2

    Mirando a herdeira

    Entrou com ação contra a Huawei e a executiva Meng Wangzhou por fraude financeira para quebrar o embargo internacional imposto a países; Wangzhou é a filha do fundador da empresa e está em prisão domiciliar no Canadá à espera de extradição para os EUA

  • 3

    Campanha de boicote

    Promove campanha internacional para que países aliados boicotem aparelhos da Huawei, argumentando que eles podem colocar em risco sua segurança nacional

Eu quero a tecnologia 5G e até 6G nos EUA o mais rápido possível. As empresas americanas devem intensificar seus esforços ou ficar para trás. Não há razão para estarmos atrasados em algo que é tão obviamente o futuro. Eu quero que os EUA ganhem com a concorrência, não bloqueando as tecnologias atualmente mais avançadas.

Donald Trump, presidente dos EUA

Tropa de Trump

A declaração de Trump é o oposto do que foi visto na feira. Os EUA mandaram emissários para espalhar a palavra: 

"Vocês querem ter um sistema potencialmente comprometido pelo governo chinês ou querem uma alternativa segura?", perguntou Robert Strayer, embaixador do Departamento de Estado para assuntos cibernéticas e internacionais, em conversa com jornalistas.

A lei chinesa "exige que as empresas apoiem e ajudem o vasto aparato de segurança de Pequim", completou. "Ameaças às redes de nossos aliados têm um impacto direto na segurança de nossas redes."

A campanha de boicote contou com oficiais norte-americanos como Strayer, Lisa Porter, subsecretária do Departamento de Defesa, e Ajit Pai, presidente do conselho da FCC (a Anatel dos EUA). Eles se reuniram com representantes de empresas e de agências reguladoras de outros países. 

Até a feira começar, os EUA já haviam conseguido que Austrália, Japão e Nova Zelândia, Reino Unido impusessem restrições a compras da Huawei.

Unidos venceremos?

Do outro lado, Guo Ping, da Huawei, ele lembra que são os EUA que criaram uma lei para exigir que empresas norte-americanas cedam dados de seus usuários guardados em outros países.

Os argumentos chineses parecem ter funcionado. Os EUA colecionaram duas derrotas no MWC: o aliado Quênia assinou um grande contrato com a Huawei, e os Emirados Árabes, também aliados de Trump, anunciaram a compra de milhares de antenas da chinesa para implantar o 5G.

Os presidentes das gigantes do celular Telefónica e Vodafone disseram que preferem tomar suas decisões sobre a Huawei com base em fatos --e até agora os EUA não apresentaram evidência de que os equipamentos da chinesa são um problema de segurança.

Documentos vazados pelo Wikileaks, no entanto, mostram que a Agência Nacional de Telecomunicações (NSA) dos EUA invadiram os sistemas da Huawei e até obtiveram emails de seu fundador, Red Zhengfei.

E o Brasil nessa? Leonardo Euler, presidente da Anatel, admitiu ter se reunido com os norte-americanos, mas não comentou qual foi o assunto tratado. O leilão do 5G por aqui vai ocorrer até março de 2020, e a Huawei, presente há mais de 20 anos no país, já é parte importante da rede 4G.

Perigo chinês?

A polarização entre EUA e China só deve aumentar, dizem os especialistas ouvidos pelo UOL Tecnologia. Ainda que a pressão americana se intensifique e a pulga na orelha em relação à Huawei continue pulando, as operadoras continuam adotando a chinesa.

A Huawei possui cerca de 30 contratos para o 5G (18 na Europa), enquanto a Ericsson, por exemplo, fechou 13.

"Na Inglaterra, França, Inglaterra, Dinamarca e Alemanha estão discutindo como tirar fornecedores chineses da rede de 5G, mas aí se perguntam: 'Vamos aceitar ter uma rede com menos funções, mais atrasada e mais cara ou vamos pagar por isso?'", comenta Jesper Rhodes, consultor da Hyper Island que trabalhou por quase 20 anos na Ericsson.

Para ele, os EUA estão incomodados com a China dominando áreas de inteligência artificial a telecomunicações. O avanço chinês assusta também porque ocorre na infraestrutura das telecomunicações, que é essencial para a sociedade e suscetível à mineração de dados valiosíssimos sobre o comportamento das pessoas. 

Não tenha dúvida que qualquer Estado que tem a tecnologia e a oportunidade de se informar e capturar inteligência de outros países irá fazer isso. Toda e qualquer instituição de inteligência de um país sabe disso. No final das contas, é uma competição entre culturas

Jesper Rhodes, consultor da Hyper Island

Sociedade de controle

Para o especialista, governos deveriam se perguntar o seguinte: "Se uma cultura tem a possibilidade de ferir ou interferir nas outras sociedades e tirar informações de lá, de que maneira ela vai lidar com isso?".

"Esse positivismo em relação à tecnologia, 'ah, se é o melhor, tem que comprar', tem um preço no longo prazo, porque a gente tem de pensar para qual caminho ela vai nos leva."

O caminho na China, diz ele, está criando uma sociedade onde se extingue a privacidade. E isso só é possível graças às informações coletadas pelo governo junto a empresas de tecnologia.

"Essa é a diferença cultural que deveria nos incomodar: na China, o cidadão é transparente, e o estado é opaco."

Topo