Peças de emoção

Pesquisadores brasileiros criam roupas inteligentes que vão revolucionar o seu guarda-roupa

Matheus Pichonelli Colaboração para o UOL, em São Paulo Getty Images

Um desenho de criança. Livros de ficção científica. Um especialista em física computacional. Uma ex-modelo que estuda eletrônica. Um bar. Um desfile cyberpunk. Games que se conectam ao nosso estado emocional.

Do encontro improvável desses elementos nasceram ideias concretas de como podemos nos vestir no futuro. São roupas que externalizam nosso humor com cores, sons e até aromas e, integradas a chips ou celulares, monitoram nossa saúde, acompanham nossas atividades físicas e informam os níveis de oxigenação muscular em casos de esforços excessivos.

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Embora tenha recebido altas pinceladas de arte cyberpunk, o projeto não é só uma piração de fanáticos por ficção científica, mas resultado de pesquisas em estágio avançado que já resultaram nos primeiros modelos brasileiros de uma moda revolucionária.

Essa história começa quando Mário Gazziro, especialista em física computacional, relia a obra do autor americano William Gibson, que na década de 1980 imaginou um universo futurista distópico com muita tecnologia e pouca qualidade de vida. Os livros, ilustrados por Josan Gonzalez, inspiraram a filha do pesquisador, de 12 anos, a desenhar um look. Quando viu os rabiscos, ele percebeu que ali nascia uma ideia.

Naquela mesma semana, uma aluna dele na Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André (Grande SP), veio com a sugestão: que tal elaborarem um desfile com roupas inteligentes? Ela, que já tinha trabalhado como modelo, queria reunir moda e eletrônica embarcada.

"Adoro a ideia de trazer a tecnologia para nosso vestuário e mesclar ciência com arte. Penso que as roupas do futuro, além do design futurístico, vão nos auxiliar no cotidiano", explica Carolina Lia Cerne, que estuda como combinar hardware e software de computadores projetados para funções específicas --a base da chamada internet das coisas.

Foi o início de uma costura complexa. O professor, então pós-doutorando do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos (SP), decidiu procurar a cosmaker Gaby Sá para transformar o desenho da filha e a ideia de Cerne em roupas reais, inspiradas na ficção científica de Gibson.

Em sua obra, Gibson apresenta elementos de bioengenharia avançados, como implantes corporais e neurais, e avanços em tecnologia de comunicações que foram quase proféticos. Foi ele quem cunhou o termo 'cyberespaco', usado para definir nossa internet, 12 anos antes do surgimento da internet comercial

Mário Gazziro

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Não era papo de bar, mas virou... Foi num ambiente tomado por música, cervejas artesanais, pesquisadores e futuros cientistas que milicianos, negociantes de software ilegal, cowboys de console e aristocratas com acesso à matrix desfilaram. A passarela foi o festival Pint of Science, que debate ciência em bares e restaurantes de São Carlos.

Cada roupa, inspirada em um personagem de Gibson, foi construída a partir do escaneamento dos corpos das modelos --o que seria um problema se Gazziro não tivesse construído seu próprio scanner 3D.

Entre helanca, couro ecológico, organza e tule ilusione, havia sensores cardíacos, que monitoram de 12 a 200 batimentos por minuto, e uma rede dedicada de internet (zigbee). Uma das vestimentas levava mais de 160 LEDs inteligentes que pulsavam de acordo com a atividade cardíaca da modelo --cada LED pode gerar 31 milhões de cores com 64 níveis de intensidade luminosa. Os feedbacks sensoriais davam nuances de cores e efeitos visuais às peças, num esquema programado por alunos do curso de Engenharia, Instrumentação e Robótica da UFABC.

Pode parecer só pirotecnia cosplay, mas há ali inovações tecnológicas importantes. Por trás do neon aparentemente sem propósito, existe uma roupa inteligente que funciona sem fios e totalmente independente de internet exterior, ou seja, mesmo no deserto do Saara a peça teria respondido aos batimentos cardíacos e à interação com as outras peças, por conta da escolha de um padrão incomum de rede wireless.

O desfile chamou a atenção de Rachel Zuanon, professora do Instituto de Artes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas-SP) que há anos pesquisa a relação entre neurociência e processos criativos para aplicações em arte, arquitetura, design, educação e saúde. Ela convidou Gazziro para um grupo de pesquisadores que se dedica a desenvolver novos modelos das "biointerfaces vestíveis", conceito cunhado por ela para roupas que se conectam intimamente com o nosso organismo.

Zuanon é uma referência no assunto e já conseguiu criar roupas impressionantemente avançadas.

No fim dos anos 1990, quando poucos acreditavam que era possível conectar as vestimentas ao organismo, ela já misturava sinais cerebrais com arte e roupa. Desde 2008, cria com o pesquisador Geraldo Lima, formas de jogar videogame de forma muito mais interativa, usando sinais neurofisiológicos para interferir nas partidas em tempo real.

Um computador vestível, sem fios e alimentado por bateria, usa sensores na pele para monitorar controle de ansiedade e reposta emocional. Um sensor cardíaco analisa o fluxo sanguíneo, a oxigenação, a frequência cardíaca e a atividade simpática e parassimpática do usuário. Tudo isso gera ações tanto no jogo online quanto na roupa, que vibra --quanto maior o nível de estresse, mais difícil ficava o jogo, por exemplo.

Mais recentemente, veio o Neuro Body Mimeses, que interpreta o estado emocional do usuário e permite que a roupa mimetize-se ao ambiente. Em outras palavras, isso quer dizer que você pode ficar mais "invisível", por exemplo, em uma situação de desconforto, o que te desobriga de interagir quando não estiver afim.

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Agora, o grupo interdisciplinar, que conta com engenheiros, designers, neurocientistas, cientistas da computação e artistas, estuda formas de produzir roupas que captem, a partir de sensores, outros sinais emitidos por nossos corpos. O objetivo é ler de forma inteligente quando sentimos frio, calor, tristeza ou alegria, por exemplo, para achar formas de gerar bem estar e saúde.

Mais do que monitorar as atividades físicas e a frequência cardíaca, como já fazem os smartwatchs, as roupas devem se transformar com as variações dos nossos estados emocionais ou ler nossos pensamentos e traduzi-los em ações.

Serão roupas que nos entendem, com as quais teremos relações afetivas. Ao monitorarem o corpo, esses dispositivos ajudam a ter uma melhor gestão da nossa saúde e do nosso controle emocional. É como se fosse alguém cuidando de você

Rachel Zuanon

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Uma das inspirações do grupo é o trabalho da visionária artista israelense Neri Oxman, professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e ativista da moda sustentável. Ela ficou conhecida por divulgar as bases da chamada ecologia de materiais, que une design computacional, biologia sintética e fabricação digital via impressão 3D. A partir dessas técnicas ela produz de objetos de vidro a roupas feitas com uma única peça de tecido.

Segundo Gazziro, as novas roupas já estão sendo pensadas para materiais poliméricos bioluminescentes e biodegradáveis. Elas devem conter ainda estruturas de metais com memória, ou seja, que podem ser deformadas milhões de vezes e, com estímulos elétricos, retornam ao seu formato original.

Assim, essas roupas representarão uma revolução não só tecnológica, mas também ambiental --numa tentativa de reduzir drasticamente o uso de poliéster e fibra sintética, materiais mais comuns da indústria têxtil atual que demoram para se decompor e que, para serem produzidos em grande escala, exigem o consumo de milhões de barris de petróleo.

A demanda já existe e deve crescer exponencialmente com a popularização do consumo sustentável e vegano. Chips também servirão para reduzir o consumo e tornar o guarda-roupa cada vez mais minimalista.

A indústria já está de olho no avanço desses estudos, mas a pesquisadora lembra que são modelos que exigirão uma mudança de hábito profunda, o que sempre gera um período de rejeição e adaptação. Essa evolução passa inclusive pela análise de questões éticas --o monitoramento dos corpos não poderão substituir diagnósticos nem prescindir da medicina, por exemplo.

"O trabalho envolve vários estágios. Em cada etapa, temos metas e entregas bem direcionadas. Mas, nosso plano é para daqui a cinco anos", explica. Hoje, o principal desafio, claro, é desenvolver uma tecnologia nacional a custo acessível, mas também transformar essas em algo usável por qualquer pessoa, de crianças a idosos ou pessoas com dificuldades motoras.

Com a industrialização, muito se produziu e se consumiu. Hoje sabemos dos danos que esse excesso gerou. Sairemos do extremo consumo e descarte para uma era de reaproveitamento, sustentabilidade e reuso inteligente. O desafio é alterar as bases têxteis hoje existentes

Rachel Zuanon

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