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Como pornografia infantil foi parar no sistema do bitcoin?

Getty Images
Imagem: Getty Images

Rodrigo Lara

Colaboração para o UOL

03/04/2018 04h00

No mês passado, pesquisadores alemães descobriram conteúdo envolvendo pornografia infantil circulando dentro do sistema de transações do bitcoin, o blockchain.

O blockchain do bitcoin não é o único que existe no mundo, mas, certamente, é um dos mais conhecidos. Assim, a descoberta abriu espaço para questionamentos e preocupações em relação à tecnologia. Como é possível que material criminoso de extrema gravidade acabe num sistema de transações financeiras?

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Natureza do sistema

O blockchain (ou cadeia de blocos, em tradução livre) funciona como o livro contábil público do bitcoin -- e de todas as outras criptomoedas. Nele, estão registradas todas as transações entre usuários. Ele as autentica por meio da criptografia e garante tanto a rastreabilidade das moedas quanto evita que existam fraudes. É assim: se “usuário A” mandou um bitcoin para o “usuário B”, o sistema registra esse movimento e impede o “usuário C” de tomar a moeda que foi de A para B.

Porém, esse livro contábil não está nas mãos de uma autoridade única, como um banco central. Ele está com toda a rede de computadores que roda o software do bitcoin. É como se, em vez do carteiro e dos correios, todos de um bairro recebessem cartas e tivessem que validar a entrega de correspondências na vizinhança.

"O bitcoin só existe porque existe o blockchain. A moeda é um código, que foi criado dentro do blockchain. O blockchain é a 'via' onde são feitas as transações dessa moeda", aponta Fernando Barrueco, responsável jurídico da Fundação Niobium e diretor da Bolsa de Moedas Virtuais Empresariais de São Paulo (BOMESP).

Como já deu para perceber, a tecnologia de um “livro de registros descentralizado” surgiu um pouco antes do bitcoin. A ideia sempre foi permitir a transmissão de dados, com um registro das movimentações, mas com um grau de anonimato entre os envolvidos – você, por exemplo, saberia que os usuários A e B fizeram a transação acima, mas não teria qualquer acesso às suas identidades.

Inicialmente, o blockchain era usado apenas para as transações envolvendo a moeda. Ele, porém, também passou a ser utilizado para transmitir outros tipos de dados já que era considerado o mais seguro do mundo.

"Com o tempo, outras funções passaram a estar disponíveis, como o envio de mensagens, registro de dados entre outras coisas, o que é possível por meio de aplicativos dedicados a esses fins. Hoje, os blocos de dados que circulam por essa rede não contém apenas informações sobre bitcoin", explica Barrueco.

Ou seja: se você quiser usar a "rede" do bitcoin para mandar uma foto ou um vídeo para um amigo, você pode usar aplicativos dedicados a esse fim.

Crime perfeito?

Por conta dessa natureza, os blocos de dados que trafegam pela blockchain não contêm apenas dados sobre transações com a moeda, mas outros tipos de informação - inclusive possíveis conteúdos criminosos - que estariam sendo armazenados e processados por computadores de usuários e mineradores da moeda.

E como esse material criminoso foi parar dentro do blockchain do bitcoin? "Provavelmente essas pessoas preferiram utilizar o blockchain porque ele é mais seguro do que a internet, diminuindo a chance de serem pegos", explica Barrueco. Basta, então, usar um programa específico para trocar arquivos nessa rede.

No momento, o maior problema seria identificar quem enviou e quem recebeu esse tipo de conteúdo dentro do blockchain. De acordo com o representante da Blockchain  Research  Institute no Brasil, Antonio Carlos Amorim, esse é um desafio imposto pela própria natureza do blockchain, que mantém o anonimato dentro da rede.

Basicamente, é possível notar dados diferentes daqueles relacionados ao bitcoin passando pelo blockchain, mas eles são criptografados, exigindo uma chave privada tanto para o envio quanto para o recebimento dos arquivos. Portanto, todo o conteúdo que trafega pelo blockchain só pode ser aberto por quem enviou ou pelo destinatário.

Imagine que duas pessoas decidem trocar conteúdo criminoso, como fotos e links. Esse material só poderá ser visualizado pelo receptor. Isso significa que se, por ventura, uma terceira pessoa cruzasse com esse material, ela não saberia qual o seu conteúdo apenas olhando “de fora”. Além disso, ela não terá como abrir esse conteúdo e nem saberá quem o mandou ou recebeu.

"Uma solução seria identificar quem envia ou recebe esse tipo de conteúdo. Ou ainda, ter meios de sinalizar esse tipo de conteúdo enquanto ele trafega pelo blockchain. Como esses dados não passam por um servidor, a transação fica anônima", diz Amorim.

Quem está no blockchain tem o material criminoso

Além disso, o combate a esse tipo de conteúdo é difícil porque todas as informações que são acrescentadas ao blockchain não podem ser apagadas. Como um livro de registros, tudo que entra na rede permanece guardado lá. 

Se você tem bitcoin em uma carteira virtual, seja minerando, comprando por corretora ou herdando do avô tecnológico, você faz parte da blockchain. Isso significa que você está participando involuntariamente da distribuição e da manutenção do material criminoso.

Se você já usou seu computador para minerar moedas, certamente sua máquina já validou a presença desse material na rede bitcoin. Nesse caso, seu computador está processando as informações do blockchain. Lembre-se: todos os computadores que participam da rede validam a movimentação de arquivos.

Agora, se você apenas negocia via corretoras, é possível que esse material não tenha passado diretamente pela sua máquina, pois é possível manter carteiras virtuais que ficam hospedadas no blockchain e não na máquina – nesse caso você apenas utilizou a rede que distribui esse conteúdo. Se, por um acaso, seu computador fosse alvo de buscas pela polícia, não seriam encontrados dados criminosos no HD.

Se a carteira virtual está instalada no seu computador, então o material criminoso passou pela sua máquina.

O que fazer agora?

Pelo visto, a utilização do blockchain para a distribuição de conteúdo criminoso não foi pensada pelos entusiastas da tecnologia. Amorim acredita a partir de agora a descoberta gerará uma mobilização dentro da comunidade para atacar o problemas.

"A melhor forma de você resolver um problema é identificar ele e isso já aconteceu. A tendência é que as autoridades e os responsáveis pelos blockchains passem a tomar medidas para tentar rastrear as pessoas envolvidas e evitar que isso aconteça. E é preciso dar um pouco de tempo para que uma solução apareça".

Barrueco ainda lembra: "Desligar os blockchains é algo impossível. Seria como tentar desligar todos os computadores do mundo" diz Barrueco. Ou seja, a solução para evitar esse tipo de crime seria identificar culpados e combater a distribuição desse material via blockchain, e não tentar acabar com a tecnologia.