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Áudio de alta definição: música para golfinhos ou sonzeira de verdade?

Reprodução/Pebble Beach Systems
Imagem: Reprodução/Pebble Beach Systems

Breno França

Colaboração para o UOL

22/04/2018 04h00

Desde que o MP3 se popularizou como o principal tipo de arquivo de áudio digital na virada dos anos 2000, existe a discussão sobre a baixa qualidade do formato, que não preservaria a música como foi gravada e imaginada por artistas, gravadoras, engenheiros de som e ratos de estúdio em geral.

Em resposta à pobreza do MP3, surgiu uma corrente de admiradores de música que defendem formatos com qualidade supostamente superior – o que, claro, ajuda a movimentar a indústria de aparelhos e fones de ouvido, além de servir de incentivo para artistas e gravadoras oferecerem produtos mais caros.

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No centro do debate está a questão: o áudio de alta definição existe mesmo ou é uma invenção da imaginação de puristas? A resposta é complicada, pois a própria definição do que seria áudio HD pode variar.

Taxas de amostragem

É difícil explicar em poucas palavras o que é um áudio HD. Parte porque não existe um padrão universal definido do que ele é, parte porque o termo por si só permite diversos sinônimos e significados e parte porque as explicações técnicas costumam afastar os mais leigos do assunto.

Para todos os efeitos, quem chegou mais perto de definir um verbete formal para o termo foi o Digital Entertainment Group em conjunto com a Consumer Electronics Association e a The Recording Academy, que disseram o seguinte:

"Áudio de alta resolução é um áudio sem perda de qualidade que é capaz de reproduzir toda a gama de som de gravações que foram masterizadas a partir de fontes de música melhores do que a de qualidade de um CD."

Para entender essa definição, porém, é preciso aprender outros dois conceitos que envolvem a produção de um arquivo de áudio: taxas de amostragem e bit depth. O primeiro diz respeito à quantidade de som analógico coletada por um aparelho digital. O segundo faz referência à qualidade dessa gravação.

No caso da gravação de CDs, por exemplo, a taxa de amostragem mais utilizada é de 44,1 KHz, ou seja, em um segundo, os gravadores captam 44,1 mil pontos de dados que transformam a onda sonora analógica numa sequência digital binária.

Já no que diz respeito ao bit depth, ele mede a variação de volume entre o ponto mais baixo e o mais alto da música. Nesse caso, os CDs com seus famosos 16 bits, apresentam uma variação de 96 dB, dado que cada bit equivale a 6 dB.

Segundo Cris Simões, produtor de artistas como Paula Fernandes, Jota Quest, Zeca Baleiro, AnaVitória e Skank, essas características davam ao CD o status de dispositivo ideal para a reprodução de músicas.

Segundo o Teorema de Nyquist, a taxa de amostragem ideal deve ser o dobro da frequência sonora que queremos reproduzir. Considerando que o ouvido humano só consegue captar sons na faixa que vai de 20 Hz até 20 KHz, teoricamente o CD seria o ideal para escutarmos áudios com alta fidelidade   

 Cris Simões, produtor musical

Acontece que já existe uma tecnologia capaz de gravar e reproduzir sons com uma qualidade acima desse padrão há bastante tempo. O próprio Cris Simões nos explica que hoje existem conversores de ondas sonoras analógicas para digitais que conseguem fazer gravações de até 192 KHz e 24 bits gerando arquivos com qualidades superiores às do CD tanto em bit depth como em taxas de amostragem, o que, por definição, passou a ser chamado de áudio HD.

Mas se você estava atento, deve ter notado uma contradição. Se nossos ouvidos só são capazes de ouvir frequências até 20 KHz de que adianta ouvir um arquivo de áudio de até 192 KHz? É aí que começa a polêmica.

Batidão para golfinhos

"Esse assunto é amplamente discutido no meio profissional há décadas", conta Simões. Ele diz que já foram realizados vários estudos com testes cegos de várias taxas de amostragem diferentes e os resultados são sempre inconclusivos.

No entanto, nós consultamos a doutora Tanit Gazn Sanchez para saber o que a medicina tem a nos dizer sobre a capacidade de audição humana. Ela que é professora da Faculdade de Medicina da USP e fundadora do primeiro centro latinoamericano de investigação e tratamento de zumbido no ouvido e intolerância a sons (hiperacusia e misofonia), explica que existe sim um consenso médico a respeito de faixas que são audíveis pelo ser humano.

"Apesar da maioria dos estudos de audiometria e do enfoque da investigação médica sobre o ouvido humano se concentrar na faixa que vai de 250 Hz a 8 KHz, nós sabemos que os limites do audível pelo ser humano vai mesmo da faixa de 20 Hz a 20 KHz", diz.

Os críticos do som HD se escoram nessa justificativa para debochar dos sons de alta definição. Eles chegaram a batizar esse tipo de arquivo de áudio de "música para golfinhos", já que esses animais têm a capacidade de ouvir frequências bem maiores do que a nossa. Será que os audiófilos que juram conseguir notar a diferença entre a música de um CD e a música de um dispositivo HD estão fazendo pose com algo que nem conseguem ouvir?

A doutora explica que seres humanos até podem treinar sua capacidade auditiva, mas nunca superar os limites da frequência do audível.

O órgão sensorial da nossa audição, a cóclea, tem entre 15 mil e 18 mil células. Com treinamento, nós até podemos aumentar a sensibilidade e otimizar o trabalho delas, mas nunca aumentá-las, tornando impossível captar frequências acima dos 20 mil Hz

Tanit Gazn Sanchez, Professora Livre-Docente pela Faculdade de Medicina da USP

Mas esse não é o ponto final da discussão. Sanchez revela que apesar de não ser audível, sons de alta frequência podem ser notados pelo corpo humano de outras formas. Isso porque existem alguns estudos sobre infrassom e ultrassom que relatam o impacto de ruídos fora da faixa audível pelo ser humano em outros sentidos.

A médica relembra um caso no qual diplomatas americanos acusaram cubanos de terem espalhado ondas sonoras de baixíssima frequência para provocar efeitos colaterais. "Eles relataram sintomas como perda de audição, dor de cabeça e enjoo por conta da lesão por infrassom. Então, sim, nosso corpo é capaz de notar uma diferença entre sons de frequências fora da faixa do audível, ainda que não seja exatamente através do ouvido", concluiu.

Por esse motivo ou por qualquer outro, fato é que toda uma indústria musical se desenvolveu ao redor dos sons de alta definição, incluindo algumas plataformas de streaming.

A rota para um bom streaming

Ainda que o MP3 seja o formato mais utilizado pelas pessoas na internet, a maneira de escutar músicas por download ainda permitia aos usuários escolherem baixar arquivos de áudio maiores para ter músicas com maior qualidade.

Porém, com o streaming, a decisão saiu da mão das pessoas e passou para as empresas donas dos aplicativos que oferecem esse serviço.

Assim, elas acabaram escolhendo formatos como o MP3, que são mais leves, baratos e fáceis de armazenar em servidores e transmitir para os usuários, prejudicando a popularização de outros formatos mais pesados e, consequentemente, mais fidedignos.

Foi aí que uma ala dos artistas começou a se queixar e o primeiro porta-voz desse movimento foi o roqueiro Neil Young, que classificou como “merda” a qualidade de áudio das plataformas.

Primeiro, Young tentou fazer o lançamento de um player de música de alta definição chamado Pono Player, em 2015. O tal “iPod de alta-definição” começou muito bem, conseguiu os fundos necessários para sair do papel e vendeu todas as unidades produzidas, mas depois de alguns meses, emperrou.

Na ocasião, o próprio Young justificou dizendo que as gravadoras cobravam "de duas a três vezes mais pelos arquivos de alta qualidade" se comparados aos MP3s, o que inviabilizou o negócio.

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O Pono Player, tocador de alta definição lançado por Neil Young
Imagem: Divulgação

Em seguida, o músico resolveu tentar um novo projeto que foi intitulado de XStream. Nesse caso, tratava-se de um site no qual Young disponibilizou toda sua discografia em alta-definição. A ideia era deixar o conteúdo com acesso gratuito por um tempo para que as pessoas conhecessem e depois cobrar por ele. Atualmente, o site já está fechado, mas parece que nunca decolou.

Só que a semente tava plantada. Inconformados com a qualidade sonora e, claro, também com a remuneração das plataformas de streaming, artistas como Beyoncé, Taylor Swift, Rihanna, Madonna, Nicki Minaj, Coldplay, Daft Punk, Calvin Harris, Deadmau5 se reuniram em torno do Tidal, serviço de streaming do rapper Jay-Z. 

O Tidal promete entregar "sons da alta qualidade" descritos como "arquivos de música que não foram compactados", o que não é inteiramente verdade. O que o serviço faz é entregar sons com uma tecnologia que confunde quem busca áudio de alta-definição, o lossless áudio (ou áudio sem perdas, em tradução livre).

Sem perdas

Fora a distinção entre áudios HD e não-HD, existe uma outra maneira de categorizar os arquivos de som. Eles são divididos em três tipos: formatos com compressão e perda de qualidade, formatos com compressão sem perda de qualidade, e os formatos sem compressão.

A definição deles é bem instintiva. Enquanto o primeiro comprime a música, permitindo inclusive cortar certas frequências dentro do limite do audível (caso do MP3), os outros dois se enquadram nos formatos chamados lossless, ou seja, sem perdas de qualidade. Fazem parte desse grupo outras extensões conhecidas como FLAC, ALAC, DSD e WAV.

Assim, o que define um áudio HD é apenas ter qualidade superior a de um CD. Já um áudio lossless refere-se à sua conversão do analógico para o digital. Por exemplo, a gravação de uma voz humana que fica 100% dentro do limite das frequências audíveis, pode ser um formato lossless se for registrada num arquivo FLAC e, ao mesmo tempo, não ser um áudio HD por não superar a qualidade de um CD.

Quando esse áudio é reproduzido por plataformas de streaming é preciso ficar atento ainda a uma terceira variável que diz respeito a quantidade de bits que o "tocador" é capaz de reproduzir por determinado intervalo de tempo. Para servir de parâmetro, enquanto o Spotify oferece uma qualidade de 160 Kbps (mil bits por segundo) na versão desktop e 96 Kbps na versão mobile para usuários não-pagantes, o serviço também oferece uma opção de 320 Kbps para assinantes. Já o Tidal conta com planos que vão até uma qualidade de 1411 Kbps.

Isso significa que quanto maior essa taxa, mais precisão o serviço vai ter na variação dos sons vai ser reproduzida

Com essa novidade, a empresa de Jay-Z conseguiu sua fatia no mercado e outros serviços de streaming e plataformas de downloads vieram na esteira do seu sucesso com os áudios HDs e lossless como HDTracks, Naim Label, Linn Records, Onkyo Music, Bowers & Wilkins Society of Sound, 2L, 7Digital, Gimell, HD Klassik, Deezer Elite e Technics Tracks. 

Mesmo o próprio Spotify está pensando em lançar uma opção semelhante para seus clientes premium. Mas nada disso vai adiantar (e você não vai poder nem testar) se também não tiver o equipamento adequado para ouvir.

jay-z tidal - Foto da Polícia - Foto da Polícia
Rapper Jay-Z, que levou a ideia de áudio sem perdas no Tidal
Imagem: Foto da Polícia

Tem que ter o radião certo

Simões faz o alerta: "Não adianta nada executar esse áudio em um player que toca músicas em MP3 porque ele vai converter esse áudio, eliminando toda a informação de alta definição que você tinha na sua gravação”. Para conseguir ouvir um áudio de alta-definição você vai precisar de mais do que um fone de ouvido convencional.

Tecnicamente, para reproduzir um som de alta resolução, players, receivers, processadores e computadores devem ter um conversor digital/analógico (D/A) de 192kHz por 24 bits. Para facilitar essa identificação, desde 2014, a Sony vem estabelecendo um conceito para áudio de alta resolução com o selo HRA (High Resolution Audio), numa proposta de padronização para gravações digitais sem perda.

A ideia é uniformizar as especificações de amostragem e profundidade e vários fabricantes – como Onkyo e Technics – já aderiram, incluindo os selos em aparelhos que aceitam FLAC, DSD e os demais principais formatos de alta resolução.

Só que Simões lembra que a maior parte do público ainda escuta música nos próprios celulares e notebooks e que a maioria desses dispositivos ainda não está preparado para sons de alta-definição.

Com base na sua experiência profissional, ele afirma que acontece com mais frequência ter que lançar uma música em MP3 por questões de armazenamento e transmissão do que o contrário.

Acredito que é muito bom para a indústria se preocupar com a alta qualidade do produto, mas acho que ainda estamos muito longe de ver isso se tornar uma realidade para o público em geral

Simões

Ainda assim, a Sony parece satisfeita com a posição num segmento “premium” com preços igualmente “premium”. Mais do que isso. A empresa agora aposta que com tecnologias como a internet 5G, o aumento das bandas vai permitir que arquivos cada vez maiores possam trafegar pela rede e, portanto, o interesse por esse tipo de produto fique cada vez maior. Mas essa é uma previsão que nós vamos ter que esperar para ver e ouvir.