O italiano Massimo Canevacci estudou a forma como os índios constroem seus ritos no Brasil
O professor universitário e pesquisador Massimo Canevacci, da Universidade La Sapienza (Roma, Itália) estudou a forma como culturas diversas, entre elas os índios Xavante, Bororó e Guarani das regiões sul e centro-oeste do Brasil, constroem seus ritos, representam e registram suas idéias, sua moral e seu cotidiano. O pesquisador, que lecionou como convidado na Universidade de São Paulo na década de 1990 e há 15 anos estuda os índios, buscou entender como esses povos adaptam as tecnologias, em especial aquelas de gravação e edição digitais, às suas necessidades, aspirações e desejos. É sobre isso que ele falou ao UOL Tecnologia, em entrevista realizada por e-mail.
Antes de entender como acontece essa adaptação, no entanto, é importante conhecer um pouco do cenário indígena dessas regiões brasileiras visitadas por Canevacci e entender como eles usam a tecnologia.
Em muitas aldeias, como as localizadas na terra Xavante de Sangradouro, entre as cidades de Primavera do Leste e Barra do Garças, no sul do estado do Mato Grosso, a escola local tem computadores e as máquinas digitais são comuns. Entre os habitantes da aldeia há aqueles que têm Orkut, filmam e fotografam seu cotidiano, além de editar vídeos e áudio. Alguns vão além, investindo em guitarras, baixos e teclados, com os quais adaptam temas e musicalidade de sua música ritual, criando um “pop Xavante”.
Nas cidades de Primavera e Barra do Garças é possível comprar CDs e DVDs indígenas em lojas, cujos donos não são índios, e a variedade de gravações chega à casa das centenas, algumas feitas em estúdios da região. Entre os títulos, há registros de festas locais, aniversário de aldeias, documentários sobre costumes e organização do trabalho, esportes e até mesmo um vídeo policial. Todos na língua Xavante.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Massimo Canevacci.
Aldeia de Sangradouro, no município de Primavera do Leste (MT), habitada por índios Xavante
UOL Tecnologia - A adaptação dos Xavantes a elementos sociais e tecnológicos facilita a autorrepresentação, como ocorre quando essa tribo grava CDs e DVDs, por exemplo?
Massimo Canevacci – Sim, neste contexto de rápida mudança pelo qual passam essas comunidades, com crescimento demográfico e educação autônoma, as novas tecnologias digitais são uma representação muito viva da mudança contínua nos hábitos cotidianos e na forma de eles entenderem o mundo. Ninguém pode ficar parado se deseja acompanhar esse processo, o que é um desafio radical para antropólogos e deveria sê-lo para os missionários.
UOL Tecnologia – As tecnologias digitais permitem a representação desses povos também frente às nossas sociedades?
Canevacci – Esta produção cria novas fronteiras de linguagem icônica e digital, com foto, vídeo e o uso da internet, cada vez mais comum, pela população indígena. O uso das novas tecnologias permite uma nova subjetividade, dando fim ao monopólio obsoleto da escrita acadêmica.
Xavantes em apresentação em festa de formatura de alunos da etnia, na região sul de Mato Grosso
UOL Tecnologia – A facilidade para se representar com meios audiovisuais é determinante na busca por uma maior qualidade e continuidade nesses trabalhos de autorrepresentação, resgate e produção cultural?
Canevacci – Os Xavantes sempre gostaram de gravar os próprios rituais e aprenderam, graças ao antropólogo Vincent Carelli, a usar eles mesmos estas tecnologias [o antropólogo fundou o projeto Vídeo nas aldeias, que entregava filmadoras e ensinava os aldeados a utilizarem esses equipamentos]. Dessa maneira, a distinção de poder e de linguagem entre quem-representa-quem, quando o antropólogo filma os nativos, cai.
Os Xavantes representam a si mesmo e às vezes também aos “outros”. O digital é fácil, barato, se comunica rápido, pode ser editado, consegue criar comunidades que trocam informações de forma autogestionada e horizontal. Também permite a ação das mulheres, que se inicia nas salas de informática das escolas das etnias.
UOL Tecnologia – Quais tipos de impactos da autorrepresentação podem ser esperados e quais o senhor encontrou em suas pesquisas com etnias indígenas brasileiras?
Canevacci – Esses impactos são determinantes em todos os sentidos. Politicamente apresentam um contexto onde a sabedoria tecnocultural transita entre novas subjetividades, como entre as culturas indígenas das aldeias e a juvenil metropolitana. Cientificamente quem tem o poder de interpretar não é mais o antropólogo externo, pois a autorrepresentação consegue penetrar nos momentos mais desconhecidos, como em rituais, chegando a se manifestar nos traços lúdicos de um ritual, que normalmente não se apresentam na frente do antropólogo. Há também um impacto identitário, porque a identidade não è uma coisa fixa, “natural”.
UOL Tecnologia – E para eles, o que é essa identidade?
Canevacci – Os Xavantes e os Bororós são vivos, nestas culturas pluralizadas e móveis, e nelas apresentam sua história, que não coincide com aquela do Brasil ou a de Roma.
Lembro que a primeira vez que fui convidado a participar do ritual da furação de orelhas em Sangradouro (que marca a entrada do jovem na vida adulta para os Xavantes), cheguei com meus equipamentos e fui filmado por três jovens. Para mim foi um choque traumático, depois salutar e enfim foi como sair da uma doença. O resultado final é ainda mais interessante: o meu vídeo e o de Divino Tserewahu, que me filmou e ao ritual, são bem diferentes, e sem nenhuma reticência é muito mais significativa a filmagem dele, que conta com elementos mais dramáticos, panoramas fortes, traços lúdicos, criticas aos velhos, coisas impossíveis de serem comunicadas por mim.
Banda Nomotsé, formada por índios Xavantes da região sul de Mato Grosso e liderada por Luciano (centro)